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23 de Outubro de 2018 às 20:40

Fazer da queda um passo de dança

Se você ainda tem alguma, pode perder a esperança. Pode não ser hoje, pode não ser amanhã, mas o cidadão anónimo vai-se manifestar. Votará errado, crucificará um Cristo ou simplesmente vai desrespeitar as leis do trânsito.

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Acho que foi Platão quem disse que o amor transforma qualquer um em poeta. Pode ser. A frase faz sentido, mas é desprovida de julgamento crítico: Platão não disse que esses poetas, surgidos em geração espontânea, da mistura de paixão, querosene e jornais velhos, seriam bons. Frequentemente eles não são.

 

Mas admiro quem, quando a desgraça é presente e o desastre iminente, consegue poetizar a vida. Não sendo uma cura, a poesia, ainda assim, é um belo remédio.

 

A epígrafe do primeiro romance que li na vida, "O Encontro Marcado", de Fernando Sabino, afirmava: "De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro."

 

A frase que mais me marcou foi "fazer da queda um passo de dança". Gravei-a no coração.

 

Tal lema ajuda-me a acreditar numa qualquer luz no fim do túnel onde (todos nós) nos encontramos.

 

Trump normalizou-se. Muito em breve, quase uma centena de milhões de pessoas vão sair de casa e livremente, em plena posse das suas faculdades mentais, vão votar num homem (no caso, Bolsonaro) que repetidamente afirma que pretende retirar-lhes os direitos.

 

Empoderado, o cidadão anónimo só acredita naquilo que crê, num ciclo viciado no qual tudo o que é contrário às suas perspetivas não existe. Triste.

 

Recordo-me de um conto que publiquei há quase 20 anos, em que profeticamente dizia: "O cidadão anónimo, por acaso tinha um nome, uma morada e um BI. Era anónimo, mas era feliz.

 

Cultivava o saudável hábito da alienação. Não lia jornais, nem revistas, nem livros. Não que fosse analfabeto, pelo contrário, havia aprendido a ler muito cedo, apenas não queria se chatear com o que quer que fosse, nem com as notícias sobre golfinhos enfermos nem com os comentários de políticos torpes.

 

Não tinha mulher, nem filhos, tinha um cão, teve um gato, queria ter um papagaio e isso não era pouco, era o bastante, tendo em vista que o basta não precisa ser necessariamente muito, nem grande, nem louco.

 

A vida seguia simples, até que o cidadão fez uma grande besteira ou cometeu um ato genial,  se calhar mais do que banal, mas que caiu no gosto dos media, catapultando o anónimo para o reconhecimento geral, tornando-o no novo ídolo dos reformados, dos rebeldes, dos betos, dos queques e até de algumas tias.

 

Famoso da noite para o dia, o cidadão anónimo deixou cair a sua máscara. Participou em anúncios, deu entrevistas, posou para fotografias ao lado de belas modelos, simulou dois ou três romances com algumas loiras de plantão, até que casou com uma morena e foi de lua-de-mel para o Ceilão.

 

Na volta, deparou-se com um dilema: na sua ausência, tendo em vista as necessidades da assistência, outro anónimo havia sido promovido e era o famoso da hora. O anónimo ficou uma fera, saudoso da exclusividade de outrora.

 

O público dividiu-se. Uma pequena parte preferia a velha boçalidade de um enquanto a maioria preferia a nova imbecilidade do outro.

 

Preterido, o cidadão anónimo voltou para a sua vidinha sem graça. Anda por aí, como mais um ilustre desconhecido na praça. Parece um tipo comum, mas só por fora. Por dentro remói um plano de vingança. E mais cedo ou mais tarde cometerá um desatino, provocará uma guerra, liderará uma matança.

 

Se você ainda tem alguma, pode perder a esperança. Pode não ser hoje, pode não ser amanhã, mas o cidadão anónimo vai-se manifestar. Votará errado, crucificará um Cristo ou simplesmente vai desrespeitar as leis do trânsito.

 

E aí, amigo, vai ser o fim do mundo em cueca. Pois o cidadão anónimo até pode ser invisível, mas tem a marca da besta eternamente tatuada na testa."    

 

Publicitário e Storyteller

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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