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Edson Athayde - Publicitário e Storyteller 23 de Fevereiro de 2021 às 19:04

De nenhum fruto queiras só a metade

Há muita História a acontecer ultimamente. Há tanta que ainda vão estudar um dia este período na tentativa de explicar como a Humanidade se portou tão mal quando a coisa já estava para lá de difícil.

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Sísifo talvez fosse um homem feliz. Considerado o mais astuto de todos, ao enganar Hades, o deus dos mortos, Sísifo foi condenado a carregar eternamente uma pedra de mármore para o cimo de uma montanha (pedra esta que rolaria de volta todos os dias para o lugar de partida). Não deixava de ser um emprego, digamos, tranquilo. Por ao menos metade do dia, todos os dias, Sísifo gozava da felicidade do dever cumprido.

Ele beneficiava de uma coisa extremamente rara: a previsibilidade. Não tinha de se preocupar com a concorrência, com a chegada das novas tecnologias, com as variações do câmbio, com os humores do chefe, com o impacto da covid na economia. Sísifo não sofria de ansiedade, nunca tomou Rivotril, nem foi ao psiquiatra.

Lembrei-me de Sísifo ao deparar-me com uma notícia sobre a subida em flecha, um pouco por todo o mundo, dos casos de ansiedade.

Como não somos Sísifo, temos de nos ocupar com a História (esta mesma com o “H” grande, fácil de reconhecer pois está sempre a bulir connosco). A História é subtil como um elefante a andar de skate numa loja de cristais. Seja a derrubar torres gêmeas ou a capotar carros de princesas em Paris, a História tem a força de um tapa na cara.

Há muita História a acontecer ultimamente. Há tanta que ainda vão estudar um dia este período na tentativa de explicar como a Humanidade se portou tão mal quando a coisa já estava para lá de difícil.

Passado apenas um ano de termos tido de encarar a narrativa pandémica parece que já cansámos do enredo e estamos, cada país do seu jeito, a encontrar novas tramas.

Na Espanha, coube a um rapper que falou mal do rei o papel de gota d’água. Por aqui, estamos atascados em discussões sobre o racismo, o que fazer com a TAP e as voltas às escolas.

Mas também há distrações boas. Dos EUA vêm as melhores. Imagens de Marte. A luta entre Jeff Bezos e Elon Musk para ver quem será o dono do espaço. E, por último, mas não menos importante, como vai ser a primeira gala remota do Óscar.

A necessidade de olhar para o lado é a nossa pedra de mármore. Raros da nossa espécie podem se orgulhar de exibir foco, força e fé. Via de regra, somos animais tontos, abelhas numa colmeia sem rainha.

Albert Camus tinha uma visão pessimista de Sísifo: “Trata-se de um herói absurdo. Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo ser se empenha em não terminar coisa alguma.”

Prefiro a versão de Miguel Torga, bem mais positiva: “Recomeça.... / Se puderes / Sem angústia / E sem pressa. / E os passos que deres, / Nesse caminho duro / Do futuro/ Dá-os em liberdade. / Enquanto não alcances / Não descanses. / De nenhum fruto queiras só metade.”

“De nenhum fruto queiras só a metade”, repete em voz alta o meu Tio Olavo. E eu repito com ele na esperança de com isto acalmar os meus tormentos.

 

Via de regra, somos animais tontos, abelhas numa colmeia sem rainha.
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