Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
03 de Novembro de 2020 às 19:34

Como negar os negacionistas

Quem nega os factos nega as suas consequências. As mais de um milhão de pessoas que oficialmente morreram pela covid na verdade ou não morreram ou já estavam para morrer ou se morreram não fazem cá muita falta. Não há respeito, nem luto, nem pudor.

  • ...

“E pur si muove”, murmurou Galilei. “E, no entanto, ela move-se”, traduzimos. A frase teria sido dita pelo físico ao final da negação do modelo heliocêntrico de universo a que foi obrigado pela Igreja. O que ele queria afirmar, com ironia, era que a Terra movia-se, mesmo que isto não fizesse sentido com toda a explanação que havia acabado de fazer.

“E pur si muove” é o que eu tenho vontade de dizer sempre que encontro um negacionista. Não que isto fizesse muita diferença. Negacionista bom é aquele que não reconhece referências históricas, muito menos respeitam Galileu. Afinal, negacionista raiz é também terraplanista.

Mas já que falámos da Igreja, vale a pena lembrar de uma passagem bíblica. Antes de o galo cantar, Pedro negou três vezes conhecer Jesus. Arrependeu-se, mas não interessa. Pedro ficou para todo o sempre como o patrono da negação. Difere de Tomé que duvidava e queria ver para crer. Mas, desde que visto, tranquilo. Tomé, diferente daquele nosso tio reacionário que insiste que a covid não existe, acreditava nas evidências.

Negar faz parte da alma humana. Negou o Papa as ideias de Copérnico, negou Colombo o caminho conhecido das Índias, negou a Nasa os limites do planeta Terra, negam os esteticistas e os operadores de Photoshop o envelhecimento alheio, negamos nós a morte todos os dias (no fundo, a única negação positiva).

Mas houve um momento em que o negacionismo deixou de ser uma teimosia musculada e ganhou foros de ciência. Foi ali pelos anos 50 quando a indústria tabaqueira americana viu que precisava de criar uma cortina de fumo (sem trocadilho) para que os fumadores duvidassem dos efeitos nocivos do cigarro.

Vem daí a cartilha básica de como desacreditar um tema (mais tarde usada pela indústria petrolífera para negar o aquecimento global). Os publicitários foram muito úteis na elaboração desse sistema. Sem eles teria sido impossível iludir tanta gente durante tantos anos. A minha profissão tem alguns telhados de vidro, não nego.

O assunto está tão na ordem do dia que os negacionistas ganharam uma série só para eles. “Utopia”, disponível na plataforma Amazon PrimeVideo, deverá agradar aos conspiracionistas em geral.

Esta já foi chamada de série errada num momento idem. Pode ser. Baseada numa outra produção inglesa de 2013, a versão americana foi lançada mundialmente em setembro deste ano, em plena pandemia. E isto está a fazer toda a diferença.

A história versa sobre uma epidemia provocada artificialmente por um vilão da indústria farmacêutica, só para provocar o uso à escala global de uma vacina armadilhada. Sim, parece que mandaram fazer um guião a partir das caixas de comentários dos jornais ou de um conjunto de mensagens no grupo da sua família no WhatsApp.

A série não é ruim. Os diálogos e as ações são ágeis, é um prazer rever John Cusack de volta à ribalta e a violência gráfica não deve nada ao Tarantino.

Porém, é impossível de assistirmos à “Utopia” sem um incômodo sincero. O que para mim parece uma ficção cómica e desbragada poderá soar como uma validação para quem duvida até da lei da gravidade.

Em “Utopia” não há bons da fita, só feios, porcos e maus. Ou são assassinos em série ou felizes genocidas. Morre-se como se respira. Não há muita lógica na eliminação das personagens. Qualquer um pode ser morto a qualquer momento da narrativa. Isto remete para um outro conceito perigoso derivado do negacionismo.

Quem nega os factos nega as suas consequências. As mais de um milhão de pessoas que oficialmente morreram pela covid na verdade ou não morreram ou já estavam para morrer ou se morreram não fazem cá muita falta. Não há respeito, nem luto, nem pudor. Afinal, não há morte para quem não compreende a vida.

Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar o escritor Vergílio Ferreira: “O amor afirma, o ódio nega. Mas por cada afirmação há milhentas de negação. Assim o amor é pequeno em face do que se odeia. Vê se consegues que isso seja mentira. E terás chegado à verdade.”

 

Ver comentários
Mais artigos de Opinião
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio