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28 de Outubro de 2020 às 08:50

A verdade é a verdade do rebanho

A crueza com que vemos Rudy, um homem já idoso, amigo de Trump, a portar-se como um tarado nos deixa incrédulos. Como é que aquilo pôde ir para o ar?

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Num filme todo ele construído como um falso documentário, o momento que mais choca na recém-estreada entrega da franquia “Borat” (na plataforma Amazon PrimeVideo) é aquele em que aparece o ex-governador de Nova Iorque Rudy Giuliani prestes a receber sexo oral de uma jovem que se faz passar por jornalista.

A longa em si é uma única (boa) piada esticada ao máximo. Não é o meu tipo de humor, mas compreendo a razão do seu sucesso. Porém, a crueza com que vemos Rudy, um homem já idoso, amigo de Trump, a portar-se como um tarado nos deixa incrédulos. Como é que aquilo pôde ir para o ar?

Há várias teorias. Uma delas é que houve uma negociação posterior à gravação do apanhado. Que o material bruto era muito pior, tão mau, tão mau que Giuliani e os seus advogados não tiveram alternativa que não fosse a de liberar as ainda assim constrangedoras cenas que podemos ver na montagem final.

Como intuímos que os momentos de verdade que vemos em “Borat” não passam de manipulações, tendemos a não levar o todo a sério. O que não deixa de ser irónico. Como se qualquer telejornal também não fosse apenas um conjunto de meias-verdades de tal maneira embrulhadas em meias-mentiras que nem mesmo os jornalistas sabem onde começam umas e terminam as outras.

A verdade absoluta não passa de um mito (sublime paradoxo). E como todos os mitos, há versões para todos os gostos.

Para os gregos, a deusa da verdade chamava-se Aleteia e vivia sozinha, escondida no mato, pois sabia que as pessoas da cidade mentiam muito. Já os romanos cultuavam Veritas, uma deusa também ela solitária, uma jovem a viver dentro de um poço. E, apesar de virgem, Veritas era mãe da Virtude.

Os egípcios tinham um mito mais curioso. Lá, uma mulher com uma pena na cabeça simbolizava a deusa Maat. Era ela que ficava à porta do inframundo a controlar quem lá entrava. O morto tinha de obter com Maat uma certidão negativa, que consistia em 42 confissões: “Não matei, não roubei, não menti...”

O defunto ainda teria o peso do seu coração medido. Na balança, o contrapeso era a tal pena que Maat levava na cabeça. Ai de quem tivesse o coração mais pesado do que a pena. Seria devorado e deixaria assim de existir para todo o sempre.

Mentirosos devorados pelos seus embustes são o tema central de “Criminal”, uma série muito peculiar que pode ver na Netflix.

“Criminal” tem várias versões. Há a “Criminal” inglesa, a francesa, a espanhola e a alemã. Foram todas gravadas num mesmo cenário e têm a mesma estrutura. Nelas vemos equipas de investigadores a inquirir possíveis criminosos. Uns e outros mentem, metem, mentem até que as verdades acabam por brotar. A tese é simples: a vida não passa de um jogo de pôquer, ganha quem souber melhor blefar.

Num mundo absolutamente perdido sobre no que pode crer, “Borat” e “Criminal” são apenas mais dois exemplos de um sem-número de séries e filmes que tentam nos lembrar que, dentro de alguma racionalidade, não vamos nos tornar em terraplanistas, devemos sempre desconfiar.

Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Nietzsche: “A verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da linguagem que lhe corresponde. O homem do rebanho chama de verdade aquilo que o conserva no rebanho e chama de mentira aquilo que o ameaça ou exclui do rebanho. Portanto, em primeiro lugar, a verdade é a verdade do rebanho.”

 

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