Opinião
A pátria de calções e chuteiras
A alegria exuberante de Abel ao posar para a posteridade com a língua de fora, os olhos rútilos, a alma lavada e encharcada de suor e orgulho, tudo isto fez-me lembrar do grande escritor Nelson Rodrigues, outro tarado por futebol.
A glória de um pode ser também a glória de todos?
Ao ver a alegria de Abel Ferreira a ganhar o troféu da Libertadores da América pelo Palmeiras, percebia que o orgulho e a felicidade eram tantos que quase não cabiam no seu corpo. Nem ele queria isto. O português tem essa coisa maravilhosa de querer sempre partilhar as suas conquistas lá fora com todos os que estão cá dentro. Que bom.
Abel disse: “A glória eterna é inacreditável.” O futebol é dado a hipérboles. Tudo é épico, é imenso, é espetacular. Mas, no caso, nem foi tanto. Realmente a conquista foi estupenda e, de certa forma, inesperada. Depois do feito obtido por Jorge Jesus no ano passado, seria muita coincidência outro profissional português alcançar o bis logo a seguir. Não foi. Que bom também.
A alegria exuberante de Abel ao posar para a posteridade com a língua de fora, os olhos rútilos, a alma lavada e encharcada de suor e orgulho, tudo isto fez-me lembrar do grande escritor Nelson Rodrigues, outro tarado por futebol.
Nelson por décadas escreveu sobre a bola. A sua coluna mais famosa sobre o tema tinha um hiperbólico título: “À Sombra das Chuteiras Imortais.”
Nelson, nos seus últimos anos de vida já muito míope, continuava a ir religiosamente ao Maracanã mas não via o que se passava em campo. Nem precisava. Os jogos que comentava eram aqueles que imaginava. Génios não precisam se preocupar com os factos. O próprio Nelson reconheceu: “No futebol, o pior cego é o que só vê a bola.”
Também a literatura portuguesa foi chamada por Nelson para explicar uma coisa tão típica do futebol como os palavrões: “Se nas relações humanas em geral o nome feio produz esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade: retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois bem: — está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano. O craque não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua.”
Outra criação futebolística de Nelson foi o Sobrenatural de Almeida, uma espécie de fantasma que tinha como missão prejudicar o Fluminense, equipa do coração do autor. O Sobrenatural intervinha nos jogos a atrapalhar cobranças de penalidades, a interromper um campeonato quando o Fluminense estava a ir bem e coisas do gênero. Com o tempo o Sobrenatural de Almeida foi adotado por outros cronistas futebolísticos e até hoje é lembrado sempre que algo de incomum acontece dentro de campo.
Pois se o Sobrenatural é de Almeida, é bem possível, diria mesmo que provável, que também seja de origem portuguesa. Um dos primeiros “almeidas”, chamado Dom Payo tomou dos mouros o castelo de Almeida da Riba Coa, ficando por este feito conhecido como “Almeidão”.
Daí que, marcado por uma inefável nostalgia lusa, o nosso “Almeidinha” sobrenatural tenha talvez decidido homenagear os seus egrégios avós, presenteando os seus patrícios com campeonatos no continente americano. A pátria portuguesa, que neste momento passa por um momento tão difícil, só pode agradecer.
Ou como diria o meu Tio Olavo: “O futebol é a pátria de calções e chuteiras.”