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06 de Janeiro de 2021 às 09:20

A fraude mais bonita

A grande pergunta que “Soul” nos traz é: estamos a fazer da nossa vida aquilo que queremos (e merecemos) que ela seja? Não há nada mais 2020 do que isto.

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A melhor métrica para medir a vida não é o calendário gregoriano e sim as histórias que acumulamos.

Num ano normal, essa conta deve priorizar as histórias vividas. Num ano como 2020, pode ser as que assistimos. O cinema (e não estou a falar das salas de cinema) não é a realidade, sempre feia, mas a bela mentira que gostamos de guardar na memória.

Como passámos o ano em diversas formas de prisão domiciliar, dedicámos muitas horas a contribuir para a riqueza da indústria de filmes e séries. Ainda assim, a oferta foi de tal maneira intensa que tenho a certeza de que muitas (boas) coisas passaram incólumes pela atenção dos meus (três ou quatro) leitores. Daí que trago aqui uma pequena lista de cinco longas disponíveis nas plataformas de streaming que precisam ser retirados da secção do vosso “a ver” o quanto antes.

“Soul” (Disney+): mesmo quando não é genial, a Pixar é fantástica. Depois de nos entregar a sua visão do que seria o mundo da química do nosso cérebro em “Divertidamente”, agora é vez da metafísica da reencarnação. A grande pergunta que “Soul” nos traz é: estamos a fazer da nossa vida aquilo que queremos (e merecemos) que ela seja? Não há nada mais 2020 do que isto.

“The Sound of Metal” (PrimeVideo): a tese deste pequeno grande filme é a de que poderíamos ser melhores pessoas se falássemos e ouvíssemos menos (ou nada). No caso, acompanhamos aqui o que se passa quando o músico Ruben perde subitamente a audição. Além de uma atuação brilhante de Riz Ahmed (possível finalista no próximo Óscar de Melhor Ator) temos uma experiência única de cinema, num trabalho de edição sonora brilhante, somos postos a experienciar o que sente o protagonista. Sim, ainda é possível encontrar algo novo em Hollywood.

“Hater” (Netflix): um bom complemento para “The Sound of Metal”. Aqui temos exposto o que acontece quando vemos e ouvimos demasiado (ou seja, o mundo de hoje). Esta longa polonesa revela como é fácil sermos manipulados através das redes sociais. No caso, acompanhamos um jovem sociopata a destruir o mundo à sua volta só porque sim. É sombrio, é preocupante, é obrigatório ser visto por quem trabalha em comunicação ou marketing.

“Vast of The Night” (PrimeVideo): um exemplo raro de ficção científica de baixo orçamento, mas com muita qualidade narrativa. Num exercício de storytelling sublime, somos abduzidos para uma noite nos anos 50, numa pequena vila do Novo México. Assim como nossos dois jovens protagonistas (na verdade são as únicas personagens da longa), passamos hora e meia a perseguir sinais de rádio e luzes misteriosas, sem nunca percebermos do que se trata até a revelação final. Económico, surpreendente, “Vast of The Night” é uma prova de que há vida inteligente nos filmes independentes lançados pelo streaming. E que não é preciso dinheiro para fazer um clássico instantâneo.

“O Poço” (Netflix): este foi lançado no começo da quarentena e merece ser lembrado/visto/revisto nem que seja por essa causa. Foi com “O Poço” que muita gente começou a se indagar se a normalidade pós-pandemia não seria diferente e melhor. Como éramos ingénuos. Numa alegoria instigante, encontramos aqui o mundo reduzido a uma plataforma com dezenas de andares e um fosso no meio. Em cada andar há prisioneiros. Pelo fosso desce todos os dias um banquete que deve ser devorado em segundos antes de ele descer para o andar inferior. Quanto mais abaixo estão presas menos sobra para as pessoas comerem, até que não sobra nada, apenas a fome e a selvajaria. Um retrato do neoliberalismo económico perfeito para espelhar a sociedade ocidental.

Claro que há muito mais para se ver. Mas quando daqui a 100 anos fizerem a arqueologia emocional de 2020 é bem possível que os filmes aqui citados apareçam.

Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Jean-Luc Godard: “O cinema é a fraude mais bonita do mundo.”

 

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