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Edson Athayde - Publicitário e Storyteller 30 de Junho de 2020 às 20:50

A democracia hackeada

O populismo da era digital defende a ideia da democracia direta, sem instituições, leis, constituição a moderar a sociedade. Quem controla a opinião do povo controla também o povo. E ele, o povo, nem sequer percebe que está a ser controlado.

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Quando você puxa o fio invisível da História, nunca sabe onde vai parar. O fio, além de metafórico, pertence a um novelo para lá de enrolado (em mais de um sentido). É assim que, para perceber as manifestações do fascismo 2.0 (que adota formas de atuação do velho fascismo sem ter de obedecer às suas bases teóricas), vamos chegar a Itália, mas não por lá ter vivido Mussolini.

O personagem que procuramos é outro, chama-se Gianroberto Casaleggio, um dos fundadores e gurus do Movimento Cinco Estrelas, aquele do comediante Beppe Grillo. No começo dos anos 90, Casaleggio trabalhava na Olivetti e foi lá que começou a testar algumas teorias sobre como mudar o comportamento das pessoas através do uso da comunicação em rede.

Muito antes de o Facebook e o Twitter existirem, Casaleggio descobriu como é fácil induzir as pessoas a concordarem com as opiniões mais abstrusas possíveis, como radicalizar grupos sociais, como convencer cidadãos aparentemente normais a acreditar em realidades paralelas sem contacto algum com o mundo dos factos.

A técnica desenvolvida por Casaleggio passa pela manipulação da construção de consensos. Somos animais sociais, preparados para, via de regra, concordar com a maioria. Assim, sempre que há um debate, a maior parte das pessoas foge das posições extremadas (independente do espectro político). O problema é que no mundo virtual é fácil trapacear o processo.

Através de perfis falsos e/ou robôs, opiniões são lançadas às redes num determinado sentido. O impacto é tremendo: muitos acabam por ser agarrados por um discurso radical, mas que não parece ser, pois já chega validado por uma maioria (no caso, fictícia).

Outra técnica é a da normalização do impossível, do improvável, do irracional. No novo normal, eu serei uma pessoa razoável só por não crer que a Terra seja plana ou que a Lua seja um holograma ou por não sair a desfilar pela Avenida da Liberdade a fazer o cumprimento nazi.

Casaleggio morreu em 2016, não sem antes hackear a democracia italiana e emprestar as suas ideias à campanha do Brexit, à campanha de Trump e à campanha de Bolsonaro. Como também se achava profeta, vaticinou: “Em 2018, o mundo será dividido em dois. O Ocidente com democracia direta e acesso gratuito à Internet e o trio liberticida China-Rússia-Oriente Próximo. Dois anos depois, haverá uma nova guerra mundial, a redução da população para um bilhão, a catarse e finalmente o renascimento em direção a Gaia, o governo mundial”.

Noutra feita, declarou: “A política não me interessa. O que me interessa é a opinião pública.” Faz sentido. O populismo da era digital defende a ideia da democracia direta, sem instituições, leis, constituição a moderar a sociedade. Quem controla a opinião do povo controla também o povo. E ele, o povo, nem sequer percebe que está a ser controlado.

Ou como diria o meu Tio Olavo: “Democracia são dois lobos e uma ovelha a fazer uma sondagem online exclusiva entre canídeos para decidir quem vai ser o jantar.”

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