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18 de Setembro de 2019 às 09:30

A casca dourada do tempo

Perdemos a noção da importância e relevância das coisas. Quando fazemos scroll no ecrã do smartphone, a foto da tarte de maçã da tia tem o mesmo destaque que o ataque terrorista na Líbia, o protesto em Hong Kong ou o novo vídeo da Anita.

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Ao falar sobre o tempo, o poeta Mário Quintana escreveu: "A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. / Quando se vê, já são seis horas! / Quando se vê, já é sexta-feira! / Quando se vê, já é Natal. / Quando se vê, já terminou o ano. / Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida. / Quando se vê, passaram 50 anos."

Quando se vê, já passou o verão, este mesmo que, na sua versão 2019, acaba agora.

 

A passagem de uma estação serve sempre para fazer balanços vários e alguma contagem do tempo.  Isto é assim porque nas nossas cabeças vivemos numa linha temporal bem definida. Pena é que as nossas cabeças não mandam no mundo. O tempo, acreditem, não existe. O tempo é uma abstração, uma convenção. Não vivemos numa narrativa lógica, ordenada e linear.

 

Por exemplo, houve um momento, há poucas semanas, que o mundo pareceu descobrir que ao norte do Brasil havia uma região chamada Amazônia. A notícia da maravilhosa existência desse lugar veio acompanhada de uma outra, infelizmente, preocupante: lá havia incêndios.

 

A sorte dos índios, dos macacos e até mesmo das girafas que nunca beberam das águas do rio Amazonas é que os povos do mundo desenvolvido deram-se as mãos e abraçaram a causa. Como é sabido, desde que fiquemos indignados (e demonstremos isto no ambiente virtual) os problemas reais da humanidade são todos resolvidos (já agora, estou a ser irônico).

 

A Amazônia continua a arder mesmo depois de ter saído da nossa pauta urgente de assuntos. Aliás, já ardia antes. Independente dos factos, para boa parte do planeta, pareceu que o apocalipse tinha chegado mais cedo. Assim como chegou, desapareceu, perdido na comparação com novas tragédias, novas polémicas, novas tretas, novas festas e dietas de verão.

 

Não vivemos, repito, numa narrativa linear. Mas vivemos no timeline do Facebook. Perdemos a noção da importância e relevância das coisas. Quando fazemos scroll no ecrã do smartphone, a foto da tarte de maçã da tia tem o mesmo destaque que o ataque terrorista na Líbia, o protesto em Hong Kong ou o novo vídeo da Anita.

 

As folhas dos meses são furiosamente arrancadas dos calendários de parede (ainda existem calendários de parede ou essa metáfora tem a mesma contemporaneidade de uma máquina de escrever, um gramofone ou o hábito de dizer "bom dia" na rua a desconhecidos?)

 

Ao adentrarmos no outono, estaremos todos a começar as despedidas de 2019. Em poucos meses este ano será apenas lembranças, memórias, nostalgias, saudades. Mas antes das exéquias, existe a vida. Ainda dá tempo de pôr em prática aquele plano fantástico, de demitir-se daquela empresa chata, de pedir em casamento a quem ama ou simplesmente começar a cultivar o difícil hábito de ter empatia com os outros.

 

A propósito disso, o meu Tio Olavo diz-me que vale continuar a ler o poema de Quintana: "Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio./ Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas." 

 

Publicitário e Storyteller

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