Opinião
Uma nova carta a Garcia
Ou como diria o meu Tio Olavo, citando uma fala do Coronel MacKenzie, personagem de “1917”, sobre as contrariedades da guerra: “Tinha a esperança de que hoje fosse um bom dia. A esperança é uma coisa perigosa.”
Há filmes grandes, há grandes filmes e há os que acumulam as funções. “1917”, de Sam Mendes, candidato a 10 Óscares, é um belo exemplo disto.
Verdadeiro tratado sobre o que em storytelling chamamos de “Jornada do Herói”, tecnicamente perfeito enquanto montagem, banda sonora e direção de atores, “1917” merece ser visto no grande ecrã, no escuro de uma sala de projeção. Se só vai ao cinema uma vez ao ano, pode gastar a sua quota relativa a 2020 agora, sem medo.
Mas a longa tem uma segunda camada que precisa de ser sublinhada. “1917” é um estupendo filme sobre a ética profissional.
Fora as bombas, as baionetas e os canhões, o que está por trás das ações não é novo, único, inusual, original. O que nos é apresentado (as diferenças entre a realização de uma tarefa e o cumprir de uma missão) pouco difere do que nos acontece todos os dias ao longo da vida. O que torna mais forte a mensagem: só alguém totalmente desprovido de empatia não irá se reconhecer naqueles soldados escolhidos para levar uma carta a um sítio perigoso da frente de combate.
Quem já se ocupou com questões de liderança e estudou minimamente sobre o assunto irá perceber que “1917” é em grande medida uma releitura do livro “Uma Carta a Garcia”.
Publicado no final do século XIX, “A Message to Garcia” usa uma passagem que teria acontecido durante a Guerra Hispano-Americana para fazer uma metáfora sobre a vida laboral. Em linhas gerais, um camarada chamado Rowan teria tido de entregar uma carta do Presidente dos EUA a um general cubano chamado Garcia.
Depois de enfrentar todos os tipos de perigos e contrariedades, Rowan entregou a carta. A ausência de questionamentos sobre o que lhe foi pedido transformou Rowan numa metáfora sobre empregados cordatos que fazem o que os altos-comandos das empresas pedem, sem encher o saco (algo, no mínimo, questionável à luz da realidade contemporânea).
“1917” é bem mais sofisticado do que isto. O conflito principal do filme reside justamente em tentar fazer-nos perceber o que motiva um ser humano a consumir a própria vida na realização de algo. As respostas mais óbvias a essa pergunta são todas apresentadas: honra, glória, reconhecimento, amizade, instinto de sobrevivência, ambição, pertencimento a um grupo ou cultura, a lista continua.
Vou levar todos os colaboradores da minha empresa ao cinema esta semana para ver “1917”. Depois iremos juntos debater os seus conteúdos. Espero que seja uma conversa franca, acesa, necessária.
Defendo que as empresas crescem quando expõem os seus funcionários a questionamentos sérios sobre o sentido da vida e do trabalho. E isto é mais fácil de se encontrar no consumo partilhado de objetos artísticos, como filmes e peças de teatro, do que em sessões de paintball. Ao menos, é essa a minha esperança.
Ou como diria o meu Tio Olavo, citando uma fala do Coronel MacKenzie, personagem de “1917”, sobre as contrariedades da guerra: “Tinha a esperança de que hoje fosse um bom dia. A esperança é uma coisa perigosa.”