Opinião
Tribunais são nova frente de batalha contra Putin
Decorem esta data: 18 de julho de 2014. É a data do maior terramoto jurídico internacional que o mundo conheceu desde o final da II Guerra Mundial.
Nesse dia, três árbitros privados reunidos num tribunal constituído ad hoc condenaram unanimemente a Federação Russa a pagar a cinco "oligarcas" mais de 50 mil milhões de dólares (o equivalente a quase 40 mil milhões de euros). Contrariamente ao que jornais tão rigorosos como o Financial Times ou o New York Times escreveram, não foi uma sentença proferida pelo Tribunal Permanente de Arbitragem, um órgão das Nações Unidas com sede em Haia. O tribunal arbitral em causa não tem ligações a qualquer organização internacional. É composto por 3 eminentes juristas internacionais (um suíço, um canadiano e um americano) que, com perspicácia, decidiram utilizar os serviços administrativos do Tribunal Permanente de Arbitragem para assegurar a logística do processo arbitral.
A Rússia foi condenada com base no Tratado da Carta da Energia, uma histórica convenção internacional assinada em Lisboa, há quase 20 anos, na sequência do desmembramento do império soviético. Mas a sentença de 600 páginas, proferida no final de um processo que demorou 10 anos, é tudo menos pacífica. Divulgada em Haia no dia seguinte ao do abate do avião da "Malaysia Airlines" que levou para a morte 238 passageiros, dos quais 193 holandeses, a condenação foi recebida com surpresa por juristas experimentados de vários quadrantes.
O processo (na verdade são três processos de diferentes montantes mas com o mesmo objeto) foi iniciado pelos acionistas da agora defunta empresa petrolífera russa Yukos, ao tempo da sua liquidação e expropriação, em 2004, a maior empresa do setor, produzindo 20% do petróleo russo e cerca de 2% do total mundial. Entre os autores do processo arbitral encontram-se sociedades offshore detidas presentemente ou no passado por Mikhail Khodorkovsky e o Leonid Nevlin, respetivamente antigos CEO e chairman da Yukos.
Khodorkovsky e Nevlin, então os homens mais ricos da Rússia, assumiram-se como opositores políticos de Putin em 2001 ao criarem a fundação Open Russia, pensada à imagem da Open Society do famoso bilionário e filantropo, George Soros. Putin decidiu vingar-se. Em poucos meses, a Yukos foi confrontada com uma fatura fiscal equivalente a 24 mil milhões de dólares. Enquanto Nevlin se refugiava em Israel, cuja nacionalidade viria a adquirir, Khodorkovsky era preso, rapidamente condenado e enviado para a Sibéria. Logo após, o património da Yukos era penhorado e vendido numa apressada hasta pública de que viria a beneficiar quase em exclusivo a petrolífera Rosneft, ao tempo detida inteiramente pelo estado russo. Assim se consumava o que o tribunal arbitral considerou o "assalto total" à Yukos com o objetivo de conduzi-la à insolvência e "afastar Khodorkovsky da arena política" russa.
Acusado de homicídio por um tribunal russo, Nevlin viria a ser condenado, à revelia, na pena de prisão perpétua. Khodorkovsky, após ter estado preso 10 anos, foi libertado em dezembro do ano passado, mercê do perdão presidencial de Putin.
O valor da indemnização fixada pelo tribunal é difícil de compreender para o comum dos mortais. Equivale a metade da ajuda da Troika a Portugal e daria para construir 40 pontes Vasco da Gama. Mesmo para o país que é o maior produtor mundial de petróleo, trata-se de um montante igual a 2,5% do seu PIB e a mais de metade das suas reservas em moeda estrangeira. O impacto financeiro da sentença arbitral é superior ao conjunto das sanções económicas decretadas pelo Ocidente contra a Rússia na sequência da anexação da Crimeia e do apoio aos separatistas da Ucrânia.
A Federação Russa tem agora até 15 de janeiro de 2015 para pagar a indemnização a que foi condenada. Ninguém tem ilusões de que o vá fazer voluntariamente. O seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, foi muito claro: "A Rússia utilizará todos os meios jurídicos possíveis para continuar a defender a sua posição", disse logo que foi conhecida a decisão.
Segue-se assim a batalha jurídica visando a anulação da sentença pelos tribunais holandeses. Mas é quase certo que o estado russo a vai perder. Depois, Nevlin e os seus sócios terão de identificar e tentar penhorar bens russos existentes nos 150 países que, através da Convenção de Nova Iorque, se vincularam a reconhecer as sentenças arbitrais internacionais. A guerra (fria) nos tribunais desses países vai ser longa.
Advogado. Perito do Secretariado do Tratado da Carta da Energia
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