Opinião
Sustentabilidade na saúde: as lições de uma pandemia
Apenas juntando público e privado vamos conseguir dar resposta aos problemas e ao aumento de procura. Basta pensar no envelhecimento da população. São os doentes, o verdadeiro foco de qualquer sistema de saúde, que ganham com isso.
A urgência da luta contra a covid-19 não ilude a necessidade de trabalhar no sentido da sustentabilidade do sistema de saúde. Antes pelo contrário, uma das lições óbvias para todos, desde os cidadãos comuns aos dirigentes políticos, é que os sistemas de saúde têm de estar habilitados a responder a uma situação como esta de pandemia que, se não for possível prever, tem de vencer e continuar a garantir a todos os cuidados de saúde necessários.
Há, assim, várias lições que já se podem retirar desta pandemia. Em primeiro lugar, a saúde deve ser uma prioridade. Parece hoje óbvio para todos que não se investiu o suficiente em saúde e que o custo do não investimento é enorme para todos nós. Dentro deste domínio, merece relevo a saúde pública, que é a função, indeclinável do Estado, de fazer o acompanhamento da evolução de saúde da população. Esta prioridade à saúde parece ter tido também ressonância em termos europeus e não se estranharia se a União Europeia passasse a acompanhar mais de perto o desempenho dos diferentes sistemas de saúde.
Uma segunda consequência é que a saúde não pode ser encarada como um silo e a situação nos lares, por exemplo, implica que se encarem os cuidados de saúde no âmbito do bem-estar geral e da segurança dos cidadãos. Nunca como hoje se torna mais premente o bordão de “saúde em todas as políticas” que se defende há anos.
Uma terceira implicação prende-se com o potencial do digital na saúde, naquilo que é não só uma tendência irreversível como uma necessidade do país (registo de saúde eletrónico, registos nacionais, etc.).
Uma quarta lição que deveria retirar-se desta crise sanitária é que os problemas de saúde dizem respeito a todos, pelo que devem ser acionados os recursos disponíveis no sistema. No caso português, um sistema misto em que os hospitais privados representam 30% da capacidade instalada, afigura-se óbvio que teria sido útil para os cidadãos que tivesse havido mais articulação e se se pensasse o sistema como um todo. Um exemplo muito recente é o do plano da DGS para o outono-inverno para cuja elaboração não foram ouvidas as entidades representativas do setor privado e assim, ao invés de se ter, como se deveria ter, um Plano do Sistema de Saúde, temos apenas um plano do SNS. Os setores privado e social são hoje uma parte significativa do sistema de saúde e ignorá-los, como aconteceu em abril passado, é abdicar de uma parte importante da resposta ao problema.
A quinta lição da pandemia é que não há só covid-19. Há outras doenças e o seguimento médico e/ou de enfermagem não pode ser interrompido, como foi. Diagnosticar atempadamente e tratar no momento certo é a única forma de garantirmos que o impacto da covid não perdurará por muitos anos e tal exige, por um lado, estratégia e liderança e, por outro lado, correta comunicação sobre a segurança dos procedimentos e circuitos e a importância de não adiar a ida a um médico ou um hospital.
Aqui chegados e se já antes da covid-19 havia muita apreensão sobre a (in)sustentabilidade do sistema de saúde português, e em particular do SNS1 , a crise só acelerou a necessidade de mudanças.
A título ilustrativo, atrevo-me a sinalizar quatro alterações essenciais que devem ser assumidas.
Em primeiro lugar, há que terminar com o subfinanciamento crónico do SNS, adotar uma orçamentação plurianual e passarmos a ter uma contratualização real e não administrativa dos cuidados de saúde (veja-se relatório recente do Conselho de Finanças Públicas), orientada pela procura.
Em segundo lugar, há que, definitivamente, fazer uma separação dos papéis do Estado na saúde (financiador, prestador, legislador, regulador, etc.), o que, porventura, passa pela criação de um organismo responsável pelas funções de gestão do SNS.
Em terceiro lugar, olhando para os bons exemplos externos, tendo em conta os investimentos realizados e disponíveis, considerando que o acesso dos portugueses aos cuidados de saúde deve ser a questão central, e dado que todos prestamos serviço público, defendo que deve haver maior articulação entre os setores público, privado e social. Apenas juntando público e privado vamos conseguir dar resposta aos problemas e ao aumento de procura. Basta pensar no envelhecimento da população. São os doentes, o verdadeiro foco de qualquer sistema de saúde, que ganham com isso.
Em quarto lugar, há hoje um consenso que os cuidados de saúde não devem ser pensados e organizados em termos de cuidados primários, secundários, continuados, etc., mas antes haver uma continuidade de serviços, dado que essa é a melhor forma de responder às necessidades de saúde dos cidadãos e de evoluir no sentido da eficiência e da sustentabilidade do sistema.
O que é preciso fazer não pode ser feito de um momento para o outro. Haverá melhorias que se podem concretizar desde já e outras reformas exigem maturação e garantias de evolução do sistema sem perturbações. O que é mesmo, mesmo urgente é assumir a necessidade de reformas e ter vontade de as fazer, não permitindo que a ortodoxia ideológica iniba as melhores soluções para a saúde dos portugueses.