Opinião
Madeira: fiscalidade e selectividade
Esta forma de agir tem um efeito de “deitar fora o bebé com a água do banho”, isto é, pôr em causa todas as empresas cumpridoras dos pressupostos e que há anos vêm criando emprego e contribuindo para o desenvolvimento regional.
No âmbito de um processo que dura há já largos anos, a Comissão Europeia (CE) anunciou a sua suspeita de que os benefícios fiscais de redução de taxa de IRC vigentes na Zona Franca da Madeira (ZFM) são "um auxílio de Estado ilegal", considerando que Portugal não respeitou as condições da autorização ao abrigo da qual tal regime foi permitido.
Na realidade, a infracção que a CE suspeita ter sido cometida pelo Estado português é a de uma insuficiente fiscalização concreta das empresas estabelecidas na ZFM. O auxílio aprovado pelas decisões da CE apresenta-se como um benefício fiscal sujeito a controlo, ou seja, a prova da verificação dos pressupostos do benefício é feita em sede de fiscalização tributária. Ora, a CE receia que esse controlo tenha sido inadequado. Contudo, em vez de agir contra o Estado-membro relativamente ao possível incumprimento dos deveres de fiscalização ou em vez de exigir modificações ao nível das fiscalizações futuras, a instituição comunitária vem pronunciar-se, a posteriori, sobre a ilegalidade do regime, em termos gerais.
Esta forma de agir tem um efeito de "deitar fora o bebé com a água do banho", isto é, pôr em causa todas as empresas cumpridoras dos pressupostos e que há anos vêm criando emprego e contribuindo para o desenvolvimento regional. Todas elas estão em causa se o regime for, afinal, ilegal. A instabilidade criada por esta decisão preliminar da CE tem uma repercussão vasta.
Um auxílio de Estado é, por definição, uma medida selectiva que se destina a acudir a uma determinada situação, favorecendo algumas empresas que nela se encontrem. Neste caso, trata-se de beneficiar as que se localizem em determinada região. Todas as regiões ultraperiféricas (RUP) têm regimes deste teor.
Em Outubro de 2017, a CE publicou a Comunicação "Uma parceria estratégica reforçada e renovada com as regiões ultraperiféricas da UE" (COM(2017) 0623), reconhecendo a necessidade de variadas iniciativas, incluindo auxílios estatais, destinadas a fomentar o seu desenvolvimento. Mais recentemente, a decisão de iniciar uma investigação formal respeita a apenas uma das nove RUP da União Europeia (UE), a Madeira, deixando de fora, por exemplo, os regimes especiais das regiões sob a responsabilidade de França e Espanha. Porém, nesta investigação, Bruxelas não averigua verdadeiramente da bondade do regime nacional nem da distorção da concorrência no mercado interno, que constitui o verdadeiro pressuposto para um regime ser considerado ilegal. Não há uma análise dos benefícios por confronto com os prejuízos concorrenciais.
Tendo tido notícias de algumas supostas situações de abuso, de alegados esquemas para contornar a regra que obriga as empresas à criação de um número mínimo de postos de trabalho, a CE não se limitou a dirigir o foco às mesmas, tomando de bom grado a oportunidade de pôr em xeque todo o regime. Podemos dizer que a CE pecou por falta de selectividade. Aliás, o Tribunal Geral da União teve recentemente ocasião de condenar a CE pela forma incorrecta de investigar por amostragem, levando tudo adiante sem averiguar as concretas situações de ilegalidade (veja-se a decisão de Fevereiro de 2019 nos processos T-131/16 e T-263/16).
A averiguação de que as actividades são realmente realizadas na Madeira e os postos de trabalho criados são reais é inerentemente casuística. Contudo, a CE propõe-se extrair uma conclusão geral a respeito do regime em si mesmo, como se não existissem na ZFM empresas cumpridoras do regime legal em vigor que contribuem efectivamente para o desenvolvimento da região.
Acresce dizer que a CE dá um salto lógico, muito mal fundamentado, ao referir que o contributo para a criação de emprego na região é sinónimo de um requisito de residência fiscal regional de todos os trabalhadores. Nas actividades marítimas e em certas actividades do sector dos serviços internacionais seria por demais despropositada essa restrição, a qual nunca foi prevista como condição do regime.
Aliás, nesses domínios, é mesmo forçoso deslocar os trabalhadores para fora da região. O regime fiscal em causa aplica-se apenas aos serviços prestados a entidades não residentes em Portugal e o transporte marítimo abrangido é apenas o internacional. Para cumprir o requisito de realizar transacções com não residentes a empresa tem de poder ir ao encontro dos clientes, sendo inviável a imobilização de todos os trabalhadores nos limites geográficos da região.
Os contribuintes têm fundadas e legítimas expectativas de que um auxílio de Estado é compatível e legal quando foi cumprido o procedimento previsto no Tratado da UE e o benefício foi aprovado, como sucedeu neste caso. A exigência inovadora vinda de Bruxelas de residência local de todos os trabalhadores frustra estas expectativas e é incoerente. Note-se que, no congénere regime espanhol, um único administrador da empresa tem de possuir residência local. Esta reivindicação recente por parte da CE é ainda mais extraordinária quando nos recordamos que, à data em que aprovou os regimes especiais das RUP portuguesa e espanhola, comparou ambas e afirmou que a desvantagem estrutural das Canárias é a elevada taxa de desemprego e a da Madeira, ao invés, o nível de desenvolvimento económico muito baixo.
De facto, também a Zona Especial Canaria (ZEC) teve como pressuposto a criação de postos de trabalho para acesso ao máximo de benefícios fiscais (com a diferença que nesta basta criar 51 postos de trabalho para um acesso ilimitado à taxa reduzida de 4% de imposto, por confronto com os 101 trabalhadores na Madeira para acesso a um benefício quantitativo com um tecto máximo). O tratamento diferenciado por parte da CE causa ainda estranheza porque, ao aprovar o regime da ZEC, exigiu que Espanha eliminasse a condição de residência local para os empregos criados, porque discriminatória, a favor dos nacionais espanhóis, em termos da livre circulação de pessoas, ao passo que, para a ZFM, ameaça pôr em causa todo o regime por Portugal não ter introduzido um requisito de residência dos trabalhadores semelhante ao que considerou inaceitável no caso espanhol.
É evidente que para efeitos de controlar, prevenir e sancionar o abuso deverá verificar-se se o emprego é criado e mantido, desconsiderando vínculos laborais artificiais. Daí até proceder como se as condições novas tivessem constado do regime desde sempre vai uma distância enorme.
Politicamente, esta abertura de investigação preliminar pela CE funcionará como forma de pressão para a negociação do regime de auxílio que futuramente vigorará na Madeira. Porém, a batalha por transparência e justiça fiscal tem de ser realizada de forma leal e imparcial. A escolha dos alvos deve ter como base os critérios reconhecidos internacionalmente para o combate das práticas tributárias prejudiciais. Se a razão for a facilidade política em agir contra uma região reconhecidamente em desvantagem, então a aplicação das regras destinadas a proteger a concorrência estará em si mesma a falsear a concorrência.
Advogados; RPBA - Sociedade de Advogados, S.P., R.L.
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