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Despesas em teletrabalho à la casa de ferreiro (…espeto de pau?)

Este esclarecimento para os empregadores privados está também a ser devidamente aplicado e cumprido pelo Governo no que respeita aos seus trabalhadores em laboração regime de teletrabalho?

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Há vários meses que se debatem problemas na laboração em regime de teletrabalho. O caso do subsídio de alimentação e, mais recentemente, o pagamento das despesas, são, de facto, apenas alguns exemplos de dúvidas que se colocam há vários meses no seio do nosso tecido empresarial (e, bem assim, também nos próprios intérpretes).

 

De forma a dirimir a querela doutrinária e jurisprudencial existente, a ACT e a DGERT esclareceram (em abril) que as empresas com trabalhadores em regime de teletrabalho (derivado das medidas de contenção da pandemia Covid-19) deveriam manter o respetivo pagamento do subsídio de alimentação.

 

Ficou, assim, por esclarecer, quem deve custear as despesas do trabalhador em regime de teletrabalho. Importando aqui em concreto, a interpretação que subjaz ao n.º 1, in fine, do artigo 168.º do Código do Trabalho ("CT"), o qual prevê que, quando um trabalhador está em teletrabalho, o empregador deve "assegurar as respetivas instalação e manutenção e o pagamento das inerentes despesas", exceto se um acordo individual ou um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho estipular em sentido contrário.

 

Na tarefa (difícil, reconhecemos) de fixar o sentido e alcance com que deve valer aquela norma jurídica, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e da Segurança Social ("MTSSS") veio recentemente esclarecer que as despesas consideradas naquele artigo se referem às despesas de instalação e manutenção dos instrumentos de trabalho respeitantes a tecnologias de informação e de comunicação. E, nessa medida, concluem, assim, que o pagamento das despesas de água, eletricidade e gás não estão abrangidas no preceito legal, ao contrário do pagamento de despesas relacionadas com internet e telefone.

 

Entendemos, contudo, que o MTSSS deveria ter ido "mais longe" no seu esclarecimento. Parece-nos que se perdeu aqui uma oportunidade para, em função da opinião emitida e do vazio existente na legislação, esclarecer, como devem ser calculadas tais despesas e como devem ser reclamadas pelos trabalhadores e, por outro, emitir orientações às entidades inspetivas que garantem que ainda não há orientações sobre este assunto.

 

Aqui chegados, cumpre deixar o "estado da arte": o MTSSS entende que os empregadores (privados?) devem custear as despesas relacionadas com internet e telefone relativamente aos trabalhadores que estejam a exercer as suas funções em regime de teletrabalho, mas ainda ninguém sabe como reclamar ou calcular esses valores.

 

Parece-nos, assim sendo, que o apuramento do cálculo destas despesas será um obstáculo difícil de contornar. Tornando, assim, difícil operacionalizar a aplicação "no terreno" desta medida.

 

E porquê? Como podem as empresas aplicar (o entendimento do MTSSS) quando desconhecem a forma de cálculo?

 

Como podem os trabalhadores e as respetivas entidades inspetivas saber se as empresas estão a cumprir? É que ambos também não conhecem, por ora, se:

 

i) o pretendido pelo MTSSS é eventualmente a criação de um subsídio fixo para o efeito?

ii) a avaliação das faturas dos trabalhadores? Solução que poderá eventualmente levantar problemas ao nível da proteção de dados…

iii) os trabalhadores provarem (e como devem fazê-lo?) o acréscimo de despesas para ter acesso a este apoio?

 

Entendemos que deveria, de facto, ter existido, antes, um esclarecimento também relativamente a todas estas questões que continuam em aberto e que, no nosso entendimento, dificultam (e muito) o tão desejado ambiente de paz e a coesão social.

 

Em alternativa às possíveis formas de cálculo supra identificadas, partilhamos para reflexão do leitor um possível sistema (o qual não é propriamente inovador, uma vez que é já aplicado por algumas empresas) de apoio às despesas do trabalhador em laboração em regime de teletrabalho: 


- Cálculo de eletricidade (se aplicável): fatura mensal/metros quadrados da residência x metros quadrados do posto de trabalho/ 10 horas de uso por dia de semana x número de horas de trabalho efetivo 

- Cálculo de Internet: fatura mensal / número de horas semanais (24x7) x número de horas de trabalho efetivo (neste até nos parece que poderia ser dividido pelo número de pessoas c/residência naquela morada). 

Não sabemos, de facto, se esta "ideia" (que reconhecemos, talvez, mais criativa) será eventualmente uma solução a ser até já equacionada pelo Governo. O que sabemos é, isso sim, que o Governo já se encontra a trabalhar na criação de regulação adicional do teletrabalho.

 

Pelo que, tratando-se de temática complexa e cuja prática nos coloca perante casos "cinzentos" aos quais urge oferecer o devido tratamento e enquadramento jurídico, cumpre, portanto, aguardar pelas orientações para este efeito que acreditamos que venham a constar (muito brevemente) do Livro Verde do Futuro do Trabalho.

 

Postos os considerandos, partilhamos, em jeito de reflexão, duas breves notas conclusivas com as questões, dúvidas e conclusões a que fomos chegando e que nos surgiram na sequência do referido esclarecimento emitido pelo MTSSS sobre as despesas em regime de teletrabalho.

 

Como primeira nota, como bem sabemos, grande parte dos portugueses não contratualiza apenas serviços de Internet. Os serviços de Internet encontram-se, por regra, num pacote que integra televisão (e, querendo, telefone fixo e/ou telemóvel).

 

Pois bem, como é que se operacionaliza os cálculos neste caso? Não nos parece razoável a solução veiculada por alguns de tal despesa ser totalmente suportada pela empresa.

 

Assim sendo, entendemos que só poderá ser exigido ao empregador que suporte o custo do consumo (de Internet e/ou telefone) em contexto profissional, isto é, no exercício efetivo das funções daquele trabalhador.

 

Eis onde surge ("mais um") obstáculo: se quanto às comunicações nos parece até possível percecionar as que estão relacionadas com o desempenho das funções, o mesmo não sucede com a Internet.

 

Vejamos. A empresa até poderia socorrer-se de uma simulação apenas com o serviço de Internet retirada da página do fornecedor do serviço daquele trabalhador para efeitos de cálculo dessa parte da despesa. Está é, digamos, a parte fácil da questão.

 

O nó górdio de toda esta problemática radica em algo que já aflorámos: na prática, a impossibilidade de quantificar, por um lado, os dados consumidos no exercício/desempenho das funções e, por outro, aqueles que foram utilizados para fins pessoais. Deste modo, não se mostrando possível quantificar (e comprovar) os dados de internet realmente gastos pelo trabalhador no exercício das funções, não nos parece uma solução razoável, adequada e justa.

 

Além disso, surge-nos ainda outra questão adicional. Na hipótese de o agregado familiar dispor de, pelo menos, duas pessoas em laboração em regime de teletrabalho. Quid juris?

 

Parece-nos que a solução encontrada pode, sem mais, escancarar portas a tentativas de "enriquecimento sem causa". Isto é, situações em que mais do que um trabalhador (do mesmo agregado e em regime de teletrabalho) apresentam às respetivas empresas aquelas despesas. Daqui resultando o seguinte: empobrecimento do empregador; enriquecimento do agregado familiar, consistente nos benefícios que lhe advieram do pagamento em duplicado de tais serviços.

 

Como segunda e última nota, importa salientar que o CT assume uma primordial relevância na disciplina do contrato de trabalho em funções públicas, face à remissão prevista no artigo 4.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas ("LTFP").

 

Este elenco das matérias cuja disciplina consta, sem prejuízo das especificidades previstas na LTFP e das necessárias adaptações, do CT, tem carácter meramente exemplificativo, já que, para além das mencionadas matérias, outras existem que também são reguladas pelo CT como sucede com o trabalho a tempo parcial e o teletrabalho – cfr. artigo 68.º, n.º 1, da LTFP e artigo 168.º do CT.

 

Isto significa, portanto, seguindo a posição assumida pelo MTSSS, que as empresas devem suportar as despesas de telefone e internet aos trabalhadores em regime de teletrabalho.

 

Nesse sentido, e conforme tratado, a norma objeto desta interpretação (vide artigo 168.º do CT) é, assim sendo, aplicável também aos trabalhados em regime de contrato em funções públicas, por expressa remissão do n.º 1 do artigo 68.º da LTFP.

 

O que significa que se coloca, assim, a questão de saber, por um lado, se o Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública faz, de facto, a mesma leitura e interpretação do seu homólogo (MTSSS)? E por outro lado ainda, se este esclarecimento para os empregadores privados está também a ser devidamente aplicado e cumprido pelo Governo no que respeita aos seus trabalhadores em laboração regime de teletrabalho?

 

É caso para dizer: Faz o que eu digo, não faças o que eu faço! Ou, por outras palavras, em casa de ferreiro, espeto de pau?

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