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Jornalismo no país do silêncio sobre a corrupção

O jornalismo que entra nas investigações é uma arma imperfeita mas muito importante – um reflexo do fracasso da política e da política de justiça.

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Concordo por princípio com a publicação editada e trabalhada de interrogatórios judiciais pelos media, sejam transcritos em papel, sejam transmitidos na televisão. Ao mesmo tempo, enquanto cidadão sinto por vezes desconforto por ver imagens de interrogatórios e percebo os riscos que este caminho pode abrir. São sentimentos opostos, mas para mim é fácil saber a qual dou primazia: ao primeiro.

 

Se digo que é fácil decidir de que lado fico não é somente pela enorme relevância das figuras envolvidas na Operação Marquês, que faz dela "o" caso judicial do regime, ou pela gravidade sem precedentes do tudo o que está descrito na acusação. Estas seriam razões de sobra para eu querer saber o máximo sobre a operação, mas há outra razão de fundo: eu vivo em Portugal e conheço razoavelmente o meu país.

 

Como vivo aqui vejo a evidente dificuldade que a justiça tem em investigar estes casos, o tempo indescritível que demora. Já lá vão mais de quatro anos de Operação Marquês e ainda nem há julgamento. A complexidade do caso é invocada para explicar a demora, mas não se fala da falta de recursos no Ministério Público, na qualificação dos procuradores (ou na ausência de mais procuradores qualificados), na cultura laboral neste mundo opaco e pouco dado à avaliação. A justiça tem o seu tempo, costuma dizer-se. Aqui tem demasiado tempo. 

 

Como vivo aqui vejo a inexistência de vontade em reformar significativamente a justiça, tornando-a mais eficaz, rápida e sujeita a avaliação. É uma tarefa naturalmente difícil, agora tornada impossível pela Operação Marquês. A corporação judicial não quer ser reformada e o Governo não quer ser visto como estando a condicionar o Ministério Público. O imobilismo continua a ser a regra.

 

Como vivo aqui assisto, com espanto, ao silêncio da classe política perante o que já se conhece sobre um ex-primeiro-ministro. Com a excepção de Ana Gomes, ninguém abre o bico. Nem no PS, nem nos outros partidos. Todos se refugiam no "tempo da justiça", como se aquilo que sabemos não chegasse para uma avaliação política e ética. É um silêncio terrivelmente revelador.

 

Como vivo aqui conheço quem critica as notícias sobre casos judiciais porque gosta de jornalismo e quem as critica porque tem uma agenda ou desempenha o papel de idiota útil - o advogado que representa vários acusados de corrupção e que se senta no Conselho de Prevenção de Corrupção, o político que defendeu Sócrates quase até ao fim e que agora defende "o Estado de Direito", o comentador que habilmente equipara a gravidade daquilo que está em causa com a forma de fazer jornalismo, etc. 

 

Conheço tudo isto e tudo isto significa que na claustrofóbica corte lisboeta, onde impera o amiguismo e escasseiam os casos conhecidos de corrupção (e ainda mais as condenações), os jornalistas e restantes cidadãos têm de fazer como os seus políticos: respeitar o tempo da justiça que ninguém quer reformar e, como escreveu Ricardo Costa, "decretar um intervalo de uma década até que o caso transite em julgado".

 

Apesar da mudança das leis e da onda de investigações recentes, a maré ainda está muito a favor da manutenção do "status quo" na corrupção. O risco de populismo judicial ainda não se compara à força do "establishment". Por isso, o jornalismo que entra nas investigações e nos interrogatórios e que trabalha para os divulgar é uma arma muito importante de pressão e de informação. É a consequência inevitável, como escreveu Nuno Garoupa, do fracasso da política e da política de justiça. Tem riscos e por vezes falha, mas nada na vida é perfeito - é daqui, deste jornalismo, que vem alguma luz sobre o que se passa. Saibamos dar valor a isso.  

 

Jornalista da revista Sábado

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