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Quando surgiu em 2016, em Alcântara, Lisboa, a Gleba foi descrita como uma padaria à antiga, onde era possível saborear um pão como o das avós, feito com fermento natural e com a moagem dos cereais num moinho de pedra. Hoje, sete anos depois, a padaria Gleba é um caso de sucesso, com várias lojas e uma faturação anual de 5 milhões e meio de euros. A palavra Gleba simboliza a relação próxima da padaria com a terra e a marca defende um regresso às origens e aos cereais cultivados nos solos portugueses, com variedades antigas e sustentáveis. Os seus grandes pilares assentam em cereais locais 100% nacionais, de alta qualidade, com moagem natural e uma fermentação longa. Estes fatores enriquecem o pão de forma que fique um produto leve, fácil de digerir e com os melhores sabor e aroma.
O fundador da Gleba, Diogo Amorim, foi o convidado do jornalista João Ferreira, no videocast Agricultura Agora | Conversas sobre Sustentabilidade. Estas entrevistas realizam-se no âmbito do Prémio Nacional de Agricultura (PNA) e têm como objetivo interagir com os intervenientes no mundo da agricultura, sobretudo na vertente da sustentabilidade. A iniciativa do BPI e da Cofina conta com o patrocínio do Ministério da Agricultura e o apoio da PricewaterhouseCoopers, e visa premiar os agricultores e as empresas portuguesas que se destacam como casos de sucesso no setor da agricultura em Portugal.
Porque escolheu o nome Gleba?
Gleba é uma palavra portuguesa, que caiu em desuso, significa terreno cultivável e tem um enquadramento histórico. Surgiu quando estava a ler um livro "Seis Mil Anos de Pão" sobre a relação entre a história da humanidade e da agricultura, nomeadamente do pão. Falava em "gleba" no sentido em que era a terra que servia para cultivar cereais que davam origem ao pão, que era a base das civilizações euro-asiáticas. Achei a palavra curiosa e muito internacional, com significados muito idênticos em diferentes línguas. Por exemplo em checo, "gleba" é pão. Tem um grande contexto histórico e representa esse componente de herança que a Gleba tem no seu ADN, para além de toda a outra componente de ser moderna, cosmopolita e inovadora, lançando muitos novos produtos.
A essência da Gleba é um regresso às origens do pão?
Sem dúvida, há uma grande componente de herança e legado. Trabalhamos exclusivamente com cereais portugueses de agricultores que conhecemos, temos uma moagem própria, artesanal, com mós de pedra para manter todas as propriedades dos cereais e uma fermentação longa e natural com massa mãe (farinha e água), sem aditivos. A massa é fermentada e mantida entre amassaduras durante dias, carrega uma grande diversidade de microrganismos, que contribui enormemente para uma série de virtudes que o nosso pão tem e que o pão em geral costumava ter, mas que deixou de ter com a industrialização.
Que diferenças há do pão artesanal para o industrial?
Hoje, o pão industrial, que foi algo preconizado por médicos e nutricionistas, é difícil de digerir, tem glúten e deixa-nos inchados. Quando o pão é feito de forma artesanal, com farinhas locais, fermentações naturais e longas, é um produto muito mais leve e fácil de digerir. A fermentação tem um impacto na digestibilidade e aumenta o valor nutricional, assim como a sua conservação. O sabor e o aroma do pão também ganham muito com este processo. Aliás, muitos dos alimentos que apreciamos, como o chocolate, café, vinho ou azeitonas são produtos em que a fermentação tem um grande impacto no aroma e no sabor. No entanto, existe também uma componente de modernidade. Quando fundei a padaria tinha apenas 21 anos. Aos 18, fui estudar para a Suíça, em Artes Culinárias, e trabalhei em alguns dos melhores restaurantes do mundo. Viajei pela Europa e Estados Unidos em busca de inspiração, porque queria pegar na tal herança ou legado dos nossos avós, mas também cruzá-lo com uma certa modernidade e com um espírito algo cosmopolita que me representa, a mim e a cada vez mais pessoas.
Nos últimos anos há bons restaurantes a retirarem o pão do menu. Porquê esta tendência?
Especialmente na altura em que estava na moda uma cozinha ultravanguardista espanhola, preconizada, por exemplo, pelo El Bulli, houve uma tendência para cortar o pão dos menus de degustação. O El Bulli chegou a ter menus de 32 pratos, com muita comida e vinho a acompanhar. Era um restaurante ultrainovador que considerava o pão o oposto de inovação. Mas felizmente, ao mesmo tempo, houve outros restaurantes que optaram por aplicar o mesmo espírito inovador e altamente perfecionista no que dizia respeito ao pão e que se debruçaram sobre estas matérias-primas muito simples, cereais de alta qualidade, água, sal, a fermentação longa, que enriquecem o produto. Aperceberam-se de uma complexidade incrível de aromas, sabores e texturas. É um bocado como o vinho, que é 100% uvas esmagadas, mas existem tantos vinhos diferentes, dependendo das técnicas, tecnologias, processos, castas e do terroir. Com o pão passa-se a mesma coisa, há diferentes cereais, técnicas de fermentação, amassadura e cozedura, e é um mundo incrível que parte de matérias-primas muito puras, simples e naturais.
Qual a variedade de pão mais vendida na Gleba?
O pão mais vendido é feito à base de trigo de barbela. Trata-se de um trigo bastante antigo que em determinada altura era cultivado em todo o território nacional, mas por ser uma variedade pouco produtiva, o seu cultivo foi sendo abandonado e manteve-se mais em Trás-os-Montes, onde os solos e o clima são mais favoráveis ao seu crescimento. A barbela é uma variedade relativamente resistente à seca, tolera solos mais ácidos, dá muita palha, o que também ajuda alguns agricultores com pequenas explorações agropecuárias, ao usar o grão e a palha em animais. Apesar de ser uma variedade que não se coaduna com a indústria moderna, porque tem pouco rendimento em farinha, é uma das que celebramos. Na Gleba, celebramos a diversidade no sentido de sustentabilidade, usando múltiplas variedades de trigo, sobretudo portuguesas ou cultivadas em Portugal. Por exemplo, fomos pioneiros a usar espelta, 100% cultivado no Alentejo. Cada vez mais trabalhamos com agricultores alentejanos no que diz respeito a cereais, e dada a proximidade, visto as nossas padarias serem em Lisboa, é muito rápido ir visitar os nossos campos de trigo, centeio, espelta etc.
Têm quantas variedades de pão neste momento?
Temos muitas, algumas dezenas, sendo que umas são fixas e outras variáveis. A barbela é uma das variedades mais importantes, temos uma broa de milho-branco incrível, inspirada nas receitas antigas do Norte do país, pão de centeio muito denso, à semelhança do que se comia antigamente em Trás-os-Montes e nas Beiras, alguns pães mais fofos, enriquecidos com manteiga ou azeite, brioches clássicos com ovos e manteiga, brioches vegans, em que usamos azeite virgem extra do Alentejo, cookies panetone, são múltiplas variedades, todas com base nestes cereais portugueses. Temos duas grandes mais-valias, que derivam da moagem integrada. Por um lado, garante-nos absoluta rastreabilidade, pois sabemos exatamente os cereais que utilizamos e controlamos o processo do grão ao pão, e por outro, asseguramos que usamos a farinha mais fresca para os nossos clientes. A farinha é como o café, está no seu expoente máximo de aroma e sabor quando acabado de moer.
A perfeição do processo é quase uma obsessão?
Sem dúvida. Há um espírito obsessivo na própria marca, todo o nosso ADN é obcecado em produzir o melhor pão. Fazer mais e melhor todos os dias é uma luta constante, até porque fazer um pão perfeito hoje não garante que o faremos amanhã. Quando falamos de modernidade, também há uma grande componente na Gleba de conhecimento profundo dos processos científicos que dão origem aos nossos produtos e dos fatores que alteram a qualidade do produto final. Há também uma busca incessante por consistência e quase uma epopeia em querer aliar o artesanal à perfeição.
Acha que a produção do pão da Gleba é uma arte?
Se pensar na expressão inglesa "arts & crafts", vejo mais como um craft, algo que se aperfeiçoa ao longo do tempo, não tanto como uma expressão artística ultracriativa. Apesar de haver uma componente criativa, há também a reprodução de uma ideia. Esta pode ser muito artística, mas é reproduzida com métodos constantes. Ao contrário de um quadro, que é absolutamente único, no caso do pão espera-se uma consistência, com a qualidade e características a que as pessoas já estão habituadas. É um grande desafio. Há uns tempos começámos a usar os cereais da nova colheita e é sempre uma descoberta quando conhecemos os agricultores e descobrimos que todos os anos o cereal é ligeiramente diferente, por ser uma matéria-prima natural.
Hoje a Gleba emprega 140 pessoas, tem nove lojas espalhadas por Lisboa e uma fábrica com uma dimensão considerável. Quanto faturou no ano passado?
Faturámos 5 milhões e meio de euros, é um valor significativo. Tendo em conta que é um negócio com uma componente tão grande de artesanalidade, há muita mão de obra envolvida, seja a pôr as mãos na massa, como no desenho e no projetar deste conceito, ou a comunicar os valores e virtudes dos nossos produtos de forma assertiva, e a fazer chegar a mensagem aos nossos clientes. Apesar do nosso volume de faturação, temos já uma equipa bastante grande, porque no nosso negócio o fator humano é determinante.
A Gleba vai continuar a crescer?
Certamente, há muito espaço para crescer. É um mercado enorme, todas as pessoas consomem pão, mas querem fazê-lo da melhor forma. Há muitas dúvidas à volta do pão, se é saudável, se engorda, se é uma fonte de hidratos de carbono necessária, se tem glúten... As pessoas são cada vez mais exigentes com o pão que consomem e é nesse sentido que acreditamos haver uma oportunidade brutal de crescimento e de correspondermos a essa procura.
Pensa internacionalizar a marca?
Existe bastante potencial nesse sentido. A marca tem características muito cosmopolitas. Há uma lógica de economia local, proximidade, transparência, fazer a ponte entre os agricultores que trabalham connosco e os nossos clientes, mas ao mesmo tempo há uma inspiração internacional no que diz respeito ao receituário e aos nossos produtos. Acreditamos que a marca é muito cosmopolita, por isso, tanto é válida em Lisboa como seria em qualquer outra cidade do mundo.Veja aqui o videocast