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António Maçanita: “Só há agricultura e jovens na agricultura se houver economia”

O enólogo e produtor de vinhos está a recuperar castas indígenas quase extintas ou fora de moda e a multiplicar o seu valor. Em entrevista, destacou o potencial da agricultura em atrair jovens e como se pode gerar valor com produtos especiais, específicos e bons, que tenham “terroir”.

03 de Fevereiro de 2023 às 14:00
António Maçanita, enólogo e produtor de vinhos
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Os projetos de António Maçanita são movidos pelo desafio e vontade de inovar. Nascem da dedicação à recuperação de vinhas pouco rentáveis, algumas em vias de extinção, conseguindo multiplicar o seu valor e criar vinhos únicos. O objetivo é sempre o mesmo: valorizar as características inerentes das castas e regiões, sempre com um sentido de recuperação histórica e desenvolvimento sustentável.

O enólogo e produtor de vinhos foi o convidado do videocast Agricultura Agora | Conversas sobre Sustentabilidade, que se realizam no âmbito do Prémio Nacional de Agricultura (PNA). Estas entrevistas são conduzidas pelo jornalista João Ferreira, e têm como objetivo interagir com os intervenientes do mundo da agricultura, sobretudo na vertente da sustentabilidade. Uma iniciativa do BPI e da Cofina que conta com o patrocínio do Ministério da Agricultura e o apoio da PriceWaterhouseCoopers. O PNA visa premiar os agricultores e as empresas portuguesas que se destacam como casos de sucesso no setor da agricultura em Portugal.

Como consegue desempenhar este milagre de recuperar vinhas que não são rentáveis e multiplicar o seu valor?
Os grandes vinhos do mundo acontecem em condições extremas de alta improbabilidade na agricultura. Vêm sempre de locais em que as produções estão no limite do crescimento. O exemplo mais extremo é o da ilha do Pico, nos Açores, onde as vinhas estão plantadas nas rachas da rocha, desafiando a definição do solo. A rocha está junto do mar bravio, com água salgada que "queima" tudo. Essas condições extremas levam a que as vinhas sejam muito pouco produtivas, menos de mil quilos por hectare, comparando, por exemplo, com os vinhos verdes, que conseguem produzir 15 a 20 toneladas por hectare. É normal que, com o tempo, estas vinhas com produtividade baixa tenham deixado de ser sustentáveis. Gosto de olhar para a palavra "sustentável" com a ideia de durabilidade. Algumas vinhas estavam em vias de extinção e foquei-me nesses projetos porque acho que os grandes vinhos se encontram nessas condições. Tenho uma ligação emocional com os Açores, pois o meu pai é açoriano. Em 2007 dei aulas de introdução sobre vinhos numa escola de hotelaria e inteirei-me de uma casta quase extinta, o Terrantez do Pico, que tinha menos de 89 plantas. Associei-me ao projeto de reabilitação desta casta, que era "mal-amada", propensa a doenças e apodrecia com facilidade. Hoje conseguimos que as 89 plantas passassem a 30 hectares.

Fruto da sua intervenção, a casta Terrantez do Pico cresceu, o preço da uva disparou e estes vinhos já começam a ser premiados pelo mundo. Como é que explica isto?
Está tudo conectado. Só há agricultura e jovens na agricultura se houver economia. O primeiro passo foi testar o potencial dessa uva. O primeiro Terrantez do Pico foi a ponta da lança desta revolução dos vinhos dos Açores e hoje é a uva mais cara da ilha. O preço da uva era de 70 cêntimos/quilo, já chegou aos 7,90 euros/quilo, e atualmente está em 4 euros/quilo. Isto muda tudo porque a partir daí já não é uma agricultura de subsistência mas sim uma agricultura onde se pode fazer dinheiro. Quando fizemos a nossa primeira plantação em 2015, havia 250 hectares de vinho, hoje há 1.000. O tempo nos Açores é muito complicado, chove muito e as pessoas desistiam facilmente, mas as contas têm de ser feitas. E a agricultura tem potencial para conseguir atrair os jovens. Por um lado, porque é negócio e tem uma boa rentabilidade, por outro porque é uma profissão bem vista socialmente. Hoje nesses 1.000 hectares temos mais de 300 viticultores a produzir uvas e alguns já a produzir vinho.

Esse método de ser uma agricultura rentável e com prestígio social pode ser a fórmula mágica para atrair os jovens para a agricultura?
Acho que é a única. Se for uma agricultura com rentabilidade baixa, tem de se arrancar com um património edificado ou terrenos, porque é muito difícil crescer com pouco. Como comecei sem terras, sem vinhas, sem nada, olhei sempre nesta perspetiva de ter de gerar valor. Gera-se valor com produtos muito especiais, muito específicos e muito bons, que tenham "terroir", palavra francesa que tenta transmitir o sentido de sítio. O "ir para a terra" incorpora esses valores, que têm a ver com cheiros, receituários, músicas, memórias… e o desafio na mais-valia dos vinhos é incorporar todos estes valores que estão na sua origem.

Faz questão de ensinar os seus truques e metodologia, o que não é muito comum. Porque é que o faz?
Tem a ver com a ideia da durabilidade. Quando visitamos um produtor de vinho da Madeira ou do Porto, percebemos que muitas vezes não foram os próprios que o fizeram. Se calhar foram os pais, os avós, ou outra geração, mesmo que não seja de família. Estamos aqui de passagem e temos de fazer bem a nós próprios e aos outros, conseguir construir. Para quem trabalha comigo e dá o litro, a minha retribuição é ensinar o máximo que consigo. Alguns têm a iniciativa e a capacidade de criar os seus próprios projetos. Nos Açores temos, pelo menos, quatro projetos que são "filhos enológicos" do nosso, e dos quais temos muito orgulho. Nas principais revistas internacionais, os vinhos dos Açores são os mais bem pontuados de Portugal. Passaram da obscuridade para o primeiro plano. No ano passado, também fomos considerados o melhor branco de Portugal na revista Grandes Escolhas. Isso é um feito, mas o feito maior é a transformação que transcende o que fazemos.

Existe aqui uma inversão na dinâmica da cadeia de valor. Em vez de espremer os seus elementos, a ideia é dar o máximo possível a todos eles. Que ganhos é que se adquire?
É mesmo essa a filosofia, a do "win-win". É uma grande região de vinhos em que o viticultor ganha bem, tem um bom negócio e é um senhor. É nessa valorização que está o ganho do todo. Desde que esteja lá a qualidade intrínseca, o excecional que faz a diferença, este círculo virtuoso é transversal, tem a ver com o salário das pessoas que estão na vinha e na adega e com a expectativa de que as pessoas transcendam a sua capacidade. Esta cadeia é um todo. Mesmo com os nossos colegas. Dentro de uma região e na interação com os outros produtores não somos concorrentes, mas sim colegas, e o nosso palco é o mundo.

E no Alentejo?
O Alentejo também surgiu da minha ligação emocional à terra, neste caso da minha mãe. Começou mais cedo e o objetivo foi empreender, conseguir ter um negócio sem vinhas, sem terrenos e sem adega. Percebi que isto só era possível arrendando ou comprando uvas, e foi isso que fiz. Em 2004, fizemos o nosso primeiro vinho a partir de uvas compradas, vinificámos na adega de uns amigos e tivemos o chamado "beginners luck". Apesar de não termos sido muito bem recebidos pela imprensa nacional, fomos premiados com o Trophy em Londres. Diria que os primeiros seis anos foi quase tentar ter um negócio. Na altura, as uvas eram caras (ainda hoje estão acima do preço de mercado), fomos construindo e pouco a pouco começámos a entender a região. Eu vinha de fora, com a ideia de inovar e de fazer "fora da caixa", de misturar as castas internacionais com as portuguesas. Mas fui-me apercebendo de que havia era pouca coisa "dentro da caixa". Havia pouca coisa feita só com as castas regionais.

Começou a estudar as tradições e a incorporá-las no vinho?
A ensaiar. Em 2010, comecei a tentar produzir a partir do Castelão, que é hoje uma casta fora de moda. Explorámos outras castas quase extintas como o Tinta Carvalha, Moreto, Alicante Branco e Trincadeira-das-Pratas. Com exceção do Moreto, são tudo castas com que só nós trabalhamos. Fomos os primeiros a engarrafar um vinho em talha, em 2010. O objetivo era descobrir a receita original, entender o passado para hoje conseguir fazer algo que transcenda. Se pensarmos num tinto alentejano de hoje, é escuro, concentrado e com álcool. Em 1860, era difícil ter 10,5% de álcool, era preciso aguardentar. Nos últimos anos, fez-se um trabalho de modernização que originou o perfil de vinhos que temos hoje. Não foi sempre assim. Talvez o grande valor esteja em pegar nesta transformação que foi feita agora, juntar o que foi no passado e colocar num vinho. Temos um vinho, os Paulistas, na base do Convento de São Paulo, que é de uma vinha velha, com castas que já não existiam, e quando provamos dá quase arrepios, é como se fosse um vinho de outro tempo. Mais uma vez, vem de uma vinha que estava condenada à extinção.

Qual vai ser o seu próximo desafio?
Estou a desenvolver um projeto com o meu amigo Nuno Faria na ilha de Porto Santo, quase numa incubadora do que fizemos nos Açores há uns anos. Temos a Companhia de Vinhos dos Profetas e Villões, estamos a recuperar a casta Listrão, o Caracol e já temos uns vinhos muito bem recebidos. É uma zona com muito potencial, vinhas rasteiras e vinhos excecionais, que já nos valeram bons prémios lá fora. Mas, mais uma vez, o preço das uvas estava a 1,5 euros/quilo em 2020 e este ano está a 4 euros o quilo.

Veja aqui o videocast Agricultura Agora | Conversas sobre Sustentabilidade.

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