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O homem que sempre gostou de sapatos

O presidente da Kyaia liderou a APPICAPS durante 18 anos e foi fulcral na modernização e afirmação internacional do sector do calçado. O seu retrato porque quem o conhece há 25 anos.

08 de Junho de 2017 às 15:26
Fortunato Frederico contsruiu uma estratégia arrojada para o sector do calçado. Ricardo Meireles / Sábado
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Como muitos outros jovens em quem se reconheciam capacidades para irem além do que o berço familiar lhes permitia, também Fortunato Frederico beneficiou de uma passagem pelo seminário. Estes 5 ou 6 anos moldaram-no de forma decisiva. Foi a escola onde leu os clássicos e aprendeu formas de procurar, organizadamente, saciar a sua inesgotável curiosidade, tornando-o num leitor compulsivo. Mas, sobretudo, foi a escola de valores que marcariam o resto da sua atitude perante a vida: a humildade, a generosidade, a lealdade e a sensibilidade social.

Desde esses tempos, e até hoje, ficou a gratidão para com o padre Sabino, sempre presente, mesmo já com uma provecta idade, em todos os momentos marcantes, sejam pessoais ou profissionais. Ainda que sendo um vencedor, a gratidão não é para Fortunato Frederico uma palavra vã. Reconhece que o seu sucesso se deve a ter o que chama "os melhores colaboradores do mundo" com quem faz questão de repartir resultados.

A fábrica de calçado Campeão Português e Domingos Torcato Oliveira são outra escola e mestre. O seu primeiro encontro parece uma cena saída de um filme do neorrealismo italiano. A Campeão Português era, na altura, um caso quase único no panorama industrial português, fosse pela sua dimensão, organização e equipamento. Para um jovem de 14 anos, ambicioso quanto baste, era o sítio por onde se queria, e devia, começar a trabalhar.

Começou por varrer a fábrica e foi sendo promovido aprendendo mais depressa que os outros, encontrando soluções onde os restantes só viam problemas, entranhando a cultura da organização industrial. Um dia, Domingos Torcato Oliveira convocou os melhores operários e indagou as suas aspirações: todos queriam ir a contramestre ou algo do género. Quando chegou a sua vez, descarado, a reposta foi taxativa: "ser como o senhor"!

Na tropa descobre o nome Kyaia

Na tropa, aprendeu a arte da disciplina e aí despertaram as suas capacidades de liderança, mesmo que por caminhos menos ortodoxos, como um levantamento de rancho, ao fim e ao cabo, uma manifestação do seu inconformismo. A designação Kyaia que dá à sua empresa foi buscá-la à localidade, em Angola, perto da qual esteve destacado.


Durante 18 anos presidiu à APICCAPS tendo sabido criar uma cumplicidade virtuosa com o respectivo secretário-geral, Manuel Carlos Silva.


Antes de regressar, para ficar, de vez, à indústria de calçado, há uma última etapa marcante na sua formação: o emprego na Carvalho e Catarro, que fez despertar nele a sensibilidade para a importância da tecnologia e da inovação. Fortunato Frederico é o "engenhoca" que estuda hidráulica para montar o seu jardim japonês! Mas é, sobretudo, o inovador que, qual Steve Jobs, magica nas soluções para necessidades que concorrentes, colaboradores e clientes só reconhecem existir quando vêem a resposta prática para elas. Alguns dos avanços em equipamentos de fabrico ou de organização industrial, em técnicas de suporte, sejam de informação ou controle, tiveram na Kyaia o seu laboratório de ensaio e nele o entusiasta que mobilizou instituições do sistema científico e tecnológico na busca de respostas surpreendentes, para não dizer disruptivas.

Todos estes ensinamentos encontraram na curiosidade irrequieta, na persistência leonina (não sei se é do Sporting por ser persistente, se é persistente por ser do Sporting), na inteligência operativa, chão fértil para medrar.

Compra marca inglesa Fly London

Em 1976 abre a primeira fábrica que começa a operar ainda nem todo o telhado estava instalado. Oito anos mais tarde cria, com o seu sócio de sempre, Amílcar Monteiro, a Kyaia, totalmente focada na exportação. Vai-se apercebendo da importância de uma marca para validar a qualidade do produto. Arguto, aproveita o desentendimento entre os sócios de uma empresa inglesa para adquirir a marca Fly London que, à custa da qualidade do produto e de uma estratégia ajustada, viria a ganhar reconhecimento. Hoje dirige o maior grupo português de produção de calçado, emprega mais de 600 trabalhadores, vende para mais de 60 países e possui "flagship stores" em grandes cidades, como Lisboa, Porto, Londres, Dublin e, mais recentemente, Nova Iorque.

Durante 18 anos, presidiu à APICCAPS tendo sabido criar uma cumplicidade virtuosa com o respectivo secretário-geral, Manuel Carlos Silva. Uma estratégia arrojada, empresários determinados, o apoio de uma estrutura dedicada e competente, conjugadas com o empenhamento incansável de Fortunato Frederico permitiram dar visibilidade e construir o reconhecimento internacional da indústria portuguesa do calçado. A sua eleição para a presidência da respectiva confederação europeia, atestam-no.

Chegou onde chegou, a pulso, por mérito, sempre sem perder a genuinidade. Mas não se pense que a vida lhe foi sempre prazenteira. Passou por uma das piores provações de um pai. Com o apoio da mulher, Alice, reergueu-se, mais determinado do que nunca, porventura com uma sensibilidade acrescida para a dimensão social que culmina com a criação de uma fundação para honrar a memória do filho e apoiar o desenvolvimento da investigação sobre a doença bipolar. 


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