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Ricardo Mexia: “Temos assistido a uma enorme falta de visão para a saúde”

Habituámo-nos a vê-lo nos ecrãs da televisão durante a pandemia. Passado este tempo, o médico de saúde pública Ricardo Mexia diz-se “preocupado” com a falta de clareza do Governo para esta área, sem que se conheça um rumo para a saúde pública.

Teresa Alves Mendes 10 de Agosto de 2023 às 14:00
Ricardo Mexia defende que “o panorama está bastante melhor” para os jovens médicos. Pedro Catarino
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O médico Ricardo Mexia enfatiza a necessidade de uma visão para a saúde pública, mas também para a saúde em geral, numa entrevista no âmbito do  entrevista ao Portugal Health Summit. Responsável pela vigilância epidemiológica de diversos eventos de massas como o Festival Boom ou o Andanças, e envolvido na resposta  à Jornada Mundial da Juventude, o também epidemiologista e presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, destaca a importância de "ouvir e confiar nos especialistas, tomar decisões corajosas e ter uma visão de futuro para garantir um sistema de saúde mais  sustentável e eficiente".

 

Porque decidiu enveredar pela política e como tem sido a experiência enquanto presidente da Junta de Freguesia do Lumiar?

Na realidade, faço política há muito tempo. Primeiro no associativismo estudantil, onde fui presidente da minha associação de estudantes, depois no associativismo profissional e também como dirigente sindical. Portanto, há mais de 20 anos que faço política nesse sentido. É verdade que em termos autárquicos foi agora a estreia. Mas sim, a política está na minha vida porque acredito que é uma maneira de podermos melhorar o que podemos, intervindo quer de forma pública, quer social. A presidência da Junta de Freguesia do Lumiar tem sido uma experiência muito fora da zona de conforto, uma enorme e enriquecedora aprendizagem.

 

Ficou conhecido dos portugueses na altura da pandemia, quando era presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. A covid-19 foi uma prova dura. O que se aprendeu dessa fase?

Saber o que é que aprendemos é algo que ainda está por responder, porque ainda não avaliámos verdadeiramente o que aconteceu.  Pelo menos eu não conheço nenhum processo de avaliação que nos permita identificar o que correu bem ou menos bem para que estejamos mais preparados para uma próxima situação semelhante, que vai necessariamente acontecer. Agora, houve de facto um conjunto de insuficiências  que nós  já conhecíamos e que se tornaram muito visíveis durante a pandemia, nomeadamente a inexistência de um sistema de informação da saúde pública. Outro aspeto particularmente pertinente foi a questão da comunicação. Infelizmente temos uma baixíssima literacia em saúde, o  que se traduz em pessoas muito vulneráveis, principalmente à proliferação de notícias falsas, de desinformação, algo que tornou este combate ainda mais difícil. A necessidade de dispormos  de  boas estratégias de comunicação, de boas  equipas  de comunicação, revelou-se absolutamente fundamental, mas  infelizmente continuam a não existir nas instituições públicas.

 

E qual pensa ser a visão do Governo para a saúde pública?

Não sabemos. Na verdade, até agora não conseguimos  vislumbrar qual é a  visão, qual é o caminho que o Governo pretende traçar nesta área da  saúde pública.

 

Mas também não se conhece a visão para a saúde de uma forma geral…

Sim, temos assistido a uma enorme falta de visão, que tem levado a uma sucessiva erosão da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS), com encerramentos  de múltiplas unidades  e de  períodos  de não funcionamento de maternidades  e de serviços de urgência, que obviamente não podem deixar de nos preocupar e que põem em causa uma das principais características do SNS, que é o acesso a cuidados de saúde para todos.

Temos de nos lembrar que nunca tivemos um orçamento tão vasto para a saúde como temos agora e que mesmo assim os problemas não estão a ser resolvidos.

Criação da direção executiva do SNS "carece de força" Além disso, com a guerra na Ucrânia, sabemos que os países estão a pôr mais dinheiro na defesa e a verdade é que o dinheiro não chega para tudo...

Naturalmente, o dinheiro não chega para tudo. Mas, independentemente disso, temos de nos lembrar que nunca tivemos um orçamento tão vasto para a saúde como temos agora e que mesmo assim os problemas não estão a ser resolvidos. Portanto, também há questões para as quais não adianta atirar dinheiro para cima, pois não se resolvem só com dinheiro, resolvem-se com organização, com a  definição de um rumo e de regras. Penso que é isso que tem faltado.

Passado tanto tempo, esta direção executiva não tem ainda as suas regras internas aprovadas, o que é um sinal da inoperância.

A criação da direção executiva do SNS não foi uma boa medida?

A criação parece ser uma boa ideia, mas que carece de força. Passado tanto tempo, esta direção executiva não tem  ainda  as  suas regras internas aprovadas, o que é um sinal da  inoperância. Na minha opinião, a direção executiva do SNS tem optado por tocar em alguns aspetos de fácil implementação, mas não temos assistido àquilo que seria importante, que era uma estruturação global. A decisão de avançar em todo o país com o modelo Unidade de Saúde Local (ULS), por exemplo. Alguém avaliou  se as ULS são vantajosas em relação aos outros modelos de funcionamento? Onde é que estão os estudos que demonstram que esse caminho trará  vantagens, seja porque permite mais ganhos em saúde, seja porque permite poupar dinheiro? Onde estão esses  dados que objetivamente nos permitam tirar essas  conclusões?

 

E ultimamente assistimos também a um momento de grande contestação dos profissionais…

De facto, voltou o ambiente de enorme contestação profissional a que assistimos no final de 2019 e que depois durante a pandemia acabou por ficar um pouco suspenso, precisamente porque os profissionais perceberam que era preciso salvar o país e as pessoas. Na altura, puseram de lado as suas legítimas reivindicações profissionais, mas agora estamos a assistir à contestação dos enfermeiros, dos técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e também dos médicos, com múltiplas greves e um processo negocial com a materialização de uma proposta absolutamente inaceitável.

 

É então muito difícil que o panorama mude, certo?

Eu acho que a situação da saúde vai mesmo piorar, até porque temos uma população progressivamente a envelhecer, recursos humanos a abandonar o SNS a um ritmo enorme, nomeadamente de médicos de família por aposentação, e ainda os profissionais mais jovens que abandonam o SNS ou não chegam sequer a integrá-lo. A equação é cada vez mais difícil porque, por um lado, temos a erosão do SNS, que tem cada vez menos profissionais e, por outro, uma crescente necessidade de prestar cuidados às pessoas.

 

Até porque temos uma boa esperança média de vida longa, mas depois temos uma má qualidade de vida na última década…

Sim, uma vida com mais incapacidade, com mais dificuldades, é necessariamente também uma vida que acarreta mais custos para o sistema de saúde. E, se não arrepiarmos  caminho, e se não apostarmos efetivamente bastante mais  na prevenção, o que nos permitirá evitar carga de doença no futuro, vejo muito difícil a sustentabilidade deste sistema, que tem custos  exponenciais, como bem sabemos, seja do ponto de vista das intervenções terapêuticas, dos dispositivos, mas também dos medicamentos.

 

Há uma "incapacidade de intervir sobre os problemas"

E acha que a Direção Executiva do SNS e a equipa ministerial estão cientes desses problemas?

Eu tenho particular estima pelos titulares de ambos os órgãos, e portanto, quero acreditar que eles sabem exatamente o que se passa no SNS. No entanto, o que temos assistido é a uma incapacidade de intervir sobre esses problemas e de implementar o que é necessário, seja devido às finanças, seja porque falta uma visão para o país. De qualquer forma, é preocupante quando o senhor primeiro-ministro não reconhece que os  profissionais de saúde, nomeadamente os médicos, tiveram uma erosão do seu poder de compra em quase 30% e que melhorar essas condições remuneratórias é importante, e também não percebe que está a assistir a uma debandada dos profissionais destas unidades. Portanto, não reconhecer isso como um problema não pode deixar de me preocupar.

 

Como espera que vá evoluir a saúde pública em Portugal?

Eu espero que evolua de uma forma positiva. Como já referi, a prevenção é a chave para conseguirmos assegurar a sustentabilidade do sistema. A minha expectativa é que se possa aumentar a disponibilidade de recursos para este setor para que se possa  reduzir a carga de doença. Já  identificámos  a necessidade de ter um sistema de informação e de ter uma força de trabalho robusta que não são só médicos, mas também enfermeiros, técnicos de saúde ambiental, pessoas ligadas à comunicação, epidemiologistas, profissionais das mais variadas áreas, que permitam sermos mais eficazes na capacidade de habilitação das pessoas. Depois, é também  importante a introdução das  novas tecnologias, nomeadamente a nossa capacidade de analisar os dados. A verdade é que em Portugal temos um nível de digitalização muito acima da média – já não há papel em praticamente nenhuma das áreas da saúde –, contudo não há muita gente a olhar para os dados e a transformá-los em informação.

 

Qual a mensagem que deixava para os jovens médicos de saúde pública, bem como para os decisores políticos?

Para os jovens médicos de saúde pública, deixo uma palavra de incentivo e de esperança. A saúde pública atravessou períodos particularmente difíceis e complicados. E, hoje, acredito que o panorama está bastante melhor, até porque ganhou uma visibilidade que não tinha tido até então, nomeadamente durante a resposta pandémica. Temos uma força de trabalho que estava envelhecida, mas que atualmente é bastante mais j ovem, uma nova geração que nos traz muita esperança. Outra questão que também considero muito importante é uma maior aposta da saúde pública ao nível local. Muitos dos colegas estão a enveredar por fazer carreira nas instituições nacionais ou internacionais, mas é fundamental que alguém fique no local, no terreno, junto das populações, junto da comunidade, para garantir que os programas, os planos, os projetos, são implementados e, portanto, há aí uma multiplicidade de oportunidades que eu gostava que os meus colegas mais jovens não desperdiçassem. Em relação aos decisores políticos, diria que é importante que oiçam os profissionais, oiçam os relatos dos especialistas, leiam os relatórios e rodeiem-se de pessoas qualificadas para que os possam ajudar na tomada de decisão e não apenas daqueles que são "yes-man" e que depois acabam por nos  para um beco sem saída.  Por fim, é importante que tomem decisões, pois na saúde protelar indefinidamente a tomada de decisão é necessariamente perder saúde.
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