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Maria de Belém Roseira: “Faz-me muita confusão esta incapacidade de planear na saúde”

Com um olhar crítico, a ex-ministra da Saúde Maria de Belém Roseira destaca, em entrevista, a falta de continuidade nas políticas de saúde. “Devíamos progredir e não estar sempre a desfazer as políticas a cada mudança de governo.” Aponta ainda a “evidente falta de planeamento”.

18 de Setembro de 2023 às 14:00
Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde Pedro Catarino
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É formada em Direito, mas toda a sua vida tem sido dedicada à política, à saúde e às causas sociais. Desempenhou inúmeros cargos ao longo de mais de quatro décadas, tendo a última delas sido dedicada à atividade política, como ministra da Saúde, ministra para a Igualdade e deputada em várias legislaturas pelo PS. Em entrevista ao Portugal Health Summit, Maria de Belém Roseira fala do passado, mas também do futuro e dos desafios crescentes na área da saúde.

 

Qual foi o principal desafio que enfrentou durante o período em que foi ministra da Saúde (1995 a 1999) – e qual foi a sua maior realização?

O principal desafio foi, com a ajuda de colaboradores fantásticos, contribuir para criar um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que tivesse as pessoas no seu centro, pois, na altura, o sistema estava muito virado para ele próprio. Já quanto ao que de mais importante se fez, destaco a construção de uma estratégia para a saúde, um trabalho feito de baixo para cima, com o envolvimento de todos os responsáveis e agentes, e que acabou por confluir num documento chamado "Saúde, um compromisso", publicado no final da década de noventa, e que assentava na definição da missão do Ministério da Saúde de garantir a melhoria dos ganhos em saúde para a população. É também desta época o conceito da interdisciplinaridade, a constituição das redes sociais locais, que ainda hoje perduram em muitas câmaras, a construção da rede dos cuidados continuados e, mais tarde, dos paliativos. Outra grande pedrada no charco foi a criação das remunerações ligadas ao desempenho, a criação das primeiras unidades locais de saúde e dos sistemas locais de saúde e a articulação com outras áreas da governação, como a Segurança Social e a Educação. Com esta última, por exemplo, a rede de Escolas Promotoras de Saúde ou, ainda, a deteção precoce das crianças carecedoras de um investimento diferente, nomeadamente as portadoras de autismo. É pena que este trabalho não tenha sido continuado. Se se tivesse mantido, 25 anos depois estaríamos melhor.

 

Em Portugal temos o hábito de abandonar as políticas só porque muda o responsável ou a cor política no governo, não é verdade?

Infelizmente é assim. Devíamos progredir em vez de estar sempre a desfazer as políticas a cada mudança de governo. E tenho muita pena que aspetos que já deviam estar resolvidos, como é o caso da reorganização dos cuidados de saúde, não o estejam por esse motivo. Precisamos de trabalhar todos num fluxo contínuo e, sobretudo, garantir que os cuidados se devem dirigir às pessoas e não o contrário. Essa é uma lógica fundamental. Temos de chegar às pessoas e, para isso, há um conjunto de medidas que têm de  ser tomadas de forma a permitir esse trabalho integrado.

 

Fernando Araújo tem "espírito de missão"

 

E quanto à direção executiva do SNS, liderada por Fernando Araújo, pensa que tem potencial para poder modificar o estado da saúde em Portugal?

Existem erros de base na conceção desta direção executiva, e se a isso acrescentarmos a falta de recursos humanos para trabalhar, penso que esta é uma tarefa de grande complexidade e só uma pessoa como o professor Fernando Araújo, com espírito de missão, com um conhecimento muito profundo e com um amor grande pelo SNS poderia liderar esta direção. Sabemos que o novo Estatuto do SNS que cria a direção executiva também aponta para a extinção das administrações regionais de saúde (ARS), mas, passado todo este tempo, esse problema não está resolvido. E por isso pergunto como é que se consegue trabalhar assim nesta indefinição, numa máquina que serve 10 milhões de pessoas, com uma exigência brutal como é a questão da saúde e da doença, da vida e da morte, da capacidade ou da incapacidade e com uma força de trabalho que tem opinião própria e problemas específicos. As pessoas que trabalham nas ARS não sabem se vão ter trabalho no futuro, se vão ser integradas nas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional… Existe uma grande indefinição, o que gera uma enorme intranquilidade e instabilidade às pessoas, com a agravante de sabermos que temos hoje pressões, na sequência da pandemia, que são muito maiores do que anteriormente. Houve uma procura não satisfeita, para além de um conjunto de desequilíbrios que se estabeleceram e que é muito difícil resolver.

 

Essa necessidade de procura é também agravada pelo envelhecimento da população…

Sim. Mas isso não é uma novidade. Nós sabíamos que íamos caminhar nesse sentido. Por isso faz-me muita confusão esta incapacidade de planear, de prever, de organizar para fazer face aos problemas do futuro na saúde. Sabia-se que a população estava a envelhecer e os recursos humanos da saúde também; não se planeou a formação de recursos humanos em função da cobertura das necessidades futuras e de novos modelos de trabalho. A abordagem da pandemia como problema único determinou uma procura não satisfeita que agora sofremos em agravamento da carga de doença. Só poderíamos ter chegado a uma situação muito complexa. Por outro lado, se não existe interoperabilidade entre o sistema de saúde público, social e privado, é evidente que se fica num colete de forças, ainda por cima com saída difícil.

A doença evitável não deixa de ser doença, faz-nos é gastar recursos que não faz sentido gastarmos se a tivéssemos prevenido. Portanto, quanto menos atuarmos no que pode travar a ocorrência de doenças, mais pressão vamos ter sobre o sistema de saúde.

E todos esses problemas se refletem na dificuldade de acesso aos cuidados, certo?

Evidente! As consequências são as dificuldades no acesso e nós precisamos de resolver isso. O professor Fernando Araújo tem ideias muito claras. Necessita de definir uma estratégia que seja conhecida, discutida com as bases, com os profissionais de saúde, tendo sempre em conta que uma solução pode ser adequada para Lisboa, mas não para o Alentejo, nem para Coimbra ou para o Porto. É preciso também não esquecer que a saúde é essencial para a construção da coesão social e para a identificação de problemas que condicionam o desenvolvimento humano. Isto porque todos os nossos problemas de pobreza, de falta de qualificação e de falta de rendimentos se vão transformar em doença que seria evitável.

 

A falta de um "data lake"  da saúde

 

Poderá a tecnologia ser aproveitada para melhorar a qualidade e a eficiência dos serviços de saúde?

A tecnologia aconselha, orienta e dá muito mais tranquilidade e segurança ao diagnóstico. Depois, é fundamental integrar todos os dados, olhando sempre a pessoa como um todo e aconselhar orientações/decisões. Portugal está a atrasar-se imenso na criação de um ‘data lake’ da saúde. Para além das vantagens em termos de tratamento, o volume de dados que proporciona, anonimizados, é fundamental para a investigação, que permite aprofundar o conhecimento. É por isso que precisamos, como pão para a boca, de construir um ‘data lake’ da saúde, aliás, em cumprimento do plano estratégico da União Europeia no domínio das novas tecnologias e da transformação digital da saúde. Mas também precisamos de avançar no registo de saúde eletrónico, porque os dados de saúde são propriedade de cada um de nós. Devemos ter a nossa história clínica toda num único local, para que quem nos atende numa determinada especialidade conheça o nosso historial e possa avaliar as interações.

É fundamental ter sistemas interoperáveis e garantir que não somos obrigados a repetir um exame só porque os sistemas não articulam.

Mas é preciso que exista a interoperabilidade entre os sistemas público e privado, algo que não existe atualmente…

Atualmente, a Lei de Bases só prevê a interoperabilidade no serviço público, o que além de ilegal – porque não é o Ministério da Saúde que pode decidir onde estão todos os meus dados – gera o acumular de ineficiências no SNS. Se eu tenho de repetir um exame que já fiz só porque vou ao privado ou vice-versa, porque não é permitido aceder aos resultados, isto é errado do ponto de vista da eficiência na utilização dos recursos, e, sobretudo, do ponto de vista ético, porque qualquer exame tem, ou pode ter, um risco associado. Os padrões de formação dos profissionais em Portugal são muito exigentes conferindo legitimidade de exercício. Razão pela qual o exame que é feito no privado deve valer para o público, da mesma maneira que, se for feito no público, tem de valer para o social e privado. É fundamental ter sistemas interoperáveis.

 

Isso implica ter uma estratégia ao nível da transformação digital. A Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) tem avançado o suficiente nessa área?

A SPMS tem produzido e avançado bastante no que se refere aos modelos de prescrição eletrónica, do acesso à prescrição dos medicamentos e agora também a outro tipo de exames, do pedido do receituário nas doenças crónicas, mas nós precisávamos que avançasse mais ao nível da construção da tal arquitetura harmoniosa que nos permitisse a interoperabilidade do registo clínico eletrónico e, depois, obviamente, um ‘data lake’ para que se possa ter uma informação valiosa para o seguimento dos cuidados de saúde e para a prestação dos cuidados de saúde no século XXI. Temos competências para isso: temos muita inteligência no país e muita capacidade de criar soluções disruptivas. E, depois, precisamos também desses dados para a sua utilização secundária na investigação. A investigação em saúde é muito importante também para a economia. Por isso é que eu costumo dizer: não perguntem à economia o que pode fazer pela saúde, perguntem à saúde o que é que pode fazer pela economia.

 

Se fosse atualmente ministra da Saúde, qual seria a sua prioridade?

A minha prioridade seria a de reunir a melhor equipa possível para, com coerência e num grande diálogo com os profissionais – que estão muito angustiados, muito perdidos, sem saber qual o caminho que será seguido – definir uma estratégia que assegurasse o cumprimento da responsabilidade constitucional de garantir o exercício do direito à proteção da saúde. Sem dúvida de que esta é uma área de trabalho intensivo e complexo. Neste momento são mais de 150 mil os recursos humanos na saúde em Portugal, a maioria muito qualificada, o que fomenta muitas opiniões diferentes. Contudo, é essencial incentivar uma cultura colaborativa em torno de um objetivo comum porque o que está em causa é o maior dos nossos bens, a saúde! Temos de nos entender em diálogo e tomar as decisões certas em tempo certo.
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