Portugal está no bom caminho e cada vez há mais diplomados na nossa população. Existem, porém, muitos desafios pela frente. Neste especial dedicado aos mestrados e às pós-graduações, António de Sousa Pereira, presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) e reitor da Universidade do Porto, aponta esses desafios das instituições de ensino superior. Nesta entrevista, fala igualmente de outros temas como o ensino à distância, a importância de ter boas qualificações ou os cursos que estão a ter mais procura.
Como se encontra atualmente o ensino superior em Portugal e que expectativas tem a CRUP para 2021?
No concurso de acesso ao ensino superior público de 2020-21 foram colocados mais de 50 mil estudantes na 1.ª fase, o maior número de sempre entre nós. Contudo, as condições excecionais em que decorreu o concurso explicam, em alguma medida, o elevado contingente de estudantes colocados. Por isso, um dos grandes desafios para 2021 é consolidar os resultados do último concurso de acesso e assim reforçar a massificação do ensino superior português, cumprindo a meta acordada com o Governo no "contrato de legislatura": ter seis em cada dez jovens com 20 anos a estudar em universidades e politécnicos até 2030.
De referir que o número total de estudantes do ensino superior tem vindo a aumentar desde 2015 e chegou aos 400 mil em 2020-21, devendo ainda sublinhar-se que a taxa de graduados na população residente entre os 30 e os 34 anos atingiu os 43% no 4º trimestre de 2020. Cumpriu-se, assim, outro dos grandes objetivos do "contrato de legislatura" e superou-se, pela primeira vez, a meta dos 40% de diplomados nessa faixa etária estabelecida pelo compromisso Europa 2020.
Mas mais estudantes no ensino superior...
... exige mais verbas e, desse ponto de vista, a situação mantém-se mais ou menos inalterada, apesar de o "contrato de legislatura" prever um aumento anual de 2% do financiamento para universidades e politécnicos até ao final da legislatura. A dotação orçamental para o ensino superior é insuficiente para os desafios que o setor tem pela frente, a saber: reforçar o apoio social aos estudantes, renovar infraestruturas e equipamentos das instituições, otimizar e modernizar a oferta formativa, valorizar as carreiras de docentes e investigadores, aprofundar os níveis de internacionalização, melhorar a interface com as empresas e modernizar o sistema científico, tecnológico e de inovação.
Considerando todos estes desafios, as expectativas para 2021 e anos seguintes são que, com o apoio da nova geração de fundos comunitários, o ensino superior consiga ultrapassar a situação de subfinanciamento em que se encontra e se capacite para fazer face à competição global centrada na atração de talento, na captação de capital, na produção de conhecimento e no desenvolvimento de tecnologias.
Quais são os desafios para o futuro que se colocam às instituições de ensino superior do país, sobretudo neste contexto de pandemia?
O ano de 2021 será complexo e exigente para as instituições de ensino superior. Desde logo, há a necessidade de recuperar a normalidade pré-covid e mitigar os efeitos da pandemia, o que passa por retomar, ou mesmo acelerar, a execução de projetos, investimentos e programas de ensino, investigação e inovação que se atrasaram por causa das restrições impostas pelo combate à covid-19. Importa também recuperar a perda de receitas das instituições, que resultou, em particular, da diminuição da prestação de serviços à comunidade e às empresas motivada pela pandemia.
Por outro lado, o número recorde de estudantes que acederam ao ensino superior no ano letivo de 2020-21 coloca novos desafios às instituições no que respeita à capacidade infraestrutural, à qualidade de instalações e equipamentos, à efetividade da ação social e aos meios para combater o insucesso e o abandono escolar. É fundamental evitar que a crise socioeconómica provocada pela pandemia leve os estudantes a abandonarem o ensino superior, por falta de condições materiais ou psicológicas.
Numa perspetiva mais ampla, a dinâmica transformadora em que se encontra o mundo traz novos desafios às instituições de ensino superior. Fenómenos como a 4.ª revolução industrial, a transição digital, a descarbonização energética, a economia verde, a transformação laboral ou os avanços biomédicos estão a ter forte impacto no ensino superior e a abrir novas oportunidades científicas e tecnológicas para as suas instituições.
A pandemia "levou" as universidades ao ensino à distância e ao ensino híbrido. Que opinião tem deste ensino? Deve ser para manter ou, assim que possível, os alunos devem regressar às aulas presenciais?
As vantagens pedagógicas do ensino à distância há muito que são conhecidas, valorizadas e maximizadas no ensino superior. O e-learning é uma solução formativa credível, eficaz e adequada às novas tendências e comportamentos sociais, em especial dos nativos digitais. A crescente mobilidade humana à escala global exige, por seu turno, um modelo de ensino sem limites geográficos ou espaciais e com grande flexibilidade de funcionamento.
A generalização do uso de tecnologias e plataformas digitais no ensino superior vai seguramente acentuar-se, o que obrigará a uma profunda reconfiguração das metodologias, técnicas, modelos e conceitos pedagógicos. Temos vindo a assistir, aliás, a um extraordinário desenvolvimento tecnológico do ensino à distância, com recurso à inteligência artificial (machine learning), ao cloud computing e ao gaming, por exemplo.
O ensino à distância tem, de facto, enormes virtualidades e poder atrativo, mas não pode ser encarado como uma alternativa ao modelo presencial. O e-learning deve, sim, ser um complemento ao ensino em sala de aula e, enquanto tal, parece-me útil e enriquecedor para os estudantes.
Por isso, considero que os estudantes devem regressar às aulas presenciais, assim que for possível do ponto de vista sanitário.
Que aporte trazem aos alunos as aulas presenciais?
Por mais virtuosas que sejam, as tecnologias e as plataformas digitais não substituem a interação física e a alteridade nas relações professor-estudante. O diálogo, a entreajuda, as sinergias e a empatia que se estabelecem numa sala de aula favorecem claramente o processo de ensino-aprendizagem.
É também fundamental que os estudantes do ensino superior frequentem aulas práticas e laboratoriais, de forma a ganharem rotinas de investigação científica e a treinarem as técnicas que vão aplicar nas suas vidas profissionais. O ensino nas universidades deve ser apoiado nas atividades de I&D, para que o estudante não seja um mero recetor passivo de conteúdos pedagógicos, mas, sim, um elemento ativo na descoberta, ou mesmo produção, do conhecimento. Isto implica alargar e aprofundar os modelos de ensino-aprendizagem baseados em projetos, de forma a promover a autoaprendizagem e o trabalho em equipa.
Tudo isto sem esquecer que as instituições de ensino superior são um território de socialização, integração social, crescimento cívico e enriquecimento cultural, pelo que os estudantes devem frequentar de facto os campi universitários.
Atualmente, é usual aconselharem-se os alunos a fazerem um mestrado, além da licenciatura. Concorda? Porquê? Quais são as vantagens de fazer um mestrado?
Sim, concordo. Como mostram as estatísticas, um jovem com mais qualificações tem maiores possibilidades de encontrar emprego e de esse emprego ter melhores condições laborais, salariais e de carreira do que alguém com um nível de formação superior mais baixo. O mercado de trabalho valoriza, e bem, os níveis mais elevados de preparação técnica, conhecimento especializado e dimensão intelectual que os mestrados garantem por comparação com as licenciaturas.
Os mestrados possibilitam, de facto, uma maior especialização epistemológica numa determinada área de estudo, para além de proporcionarem uma experiência superlativa de investigação científica, de conceptualização teórica e metodológica, de problematização intelectual e de gestão de projetos, por exemplo.
Quais são as vantagens de uma pós-graduação?
A formação ao longo da vida impõe-se cada vez mais como um fator crítico de empregabilidade, produtividade e progressão na carreira. Isto significa que, para lá da formação superior de base, os cidadãos devem reforçar as suas competências quer através de cursos de pós-graduação conferentes de grau, quer através da educação contínua materializada em estudos avançados, especializações e atualizações. Deste modo, há uma evolução individual ao nível das competências académicas que, no competitivo mundo de hoje, se afigura de extrema importância para a plena realização profissional.
Numa conjuntura marcada pela alta tecnicidade, rigor científico e especialização tecnológica da generalidade das atividades humanas, os cidadãos devem submeter-se a constantes processos de aprendizagem, sob pena de serem excluídos de sociedades organizadas em função do conhecimento. De resto, a emergência das novas indústrias de alta tecnologia veio acentuar a importância do conhecimento técnico-científico no desenvolvimento socioeconómico.
Quais são as áreas e cursos, de 1.º e de 2.º ciclo, que têm mais procura? A pandemia mudou algo? Existem agora mais alunos a procurarem mestrados ou pós-graduações, atendendo ao contexto em que vivemos no último ano?
Verifica-se uma tendência, nomeadamente nos últimos concursos de acesso ao ensino superior, para uma maior procura de cursos de engenharia, ciências matemáticas e ciências da computação, que rivalizam hoje com os cursos de ciências médicas. Isto diz-nos que os jovens portugueses têm consciência do peso crescente da especialização tecnológica na organização económica e, consequentemente, no mercado de trabalho. Por isso, orientam as suas opções académicas para cursos que formam talento tecnológico, tornando-se assim atrativos para os setores de elevada especialização, previsivelmente mais competitivos e preparados para o futuro.
Quanto à atratividade de mestrados e pós-graduações, é seguro dizer que, antes da pandemia, havia uma procura crescente e consistente de cursos de 2.º e 3.º ciclo. Com a crise socioeconómica motivada pela pandemia, é possível que haja um recuo na procura de mestrados, pós-graduações e doutoramentos, mas ainda é prematuro sabê-lo com rigor.
Quanto às universidades, estão sensíveis a esta nova realidade e oferecem novos programas de mestrados e pós-graduações?
Sim, sem dúvida. As universidades públicas têm procurado otimizar e modernizar a sua oferta formativa, designadamente ao nível dos mestrados e pós-graduações. Há um esforço visível para adaptar os programas de estudos às necessidades de diferentes públicos, para os tornar mais curtos, flexíveis e customizados, para lhes conferir diferentes graus de especialização e para observar a exigência contemporânea de multi e interdisciplinaridade curricular.
Entrou em funções em outubro. Que balanço faz destes meses no cargo e quais são os principais projetos para o futuro da CRUP?
Ainda é prematuro fazer um balanço, mas poderei destacar como factos relevantes a defesa da autonomia pedagógica, científica e administrativa das universidades em face da decisão governamental de encerrar o sistema escolar, reivindicação que deu às instituições a possibilidade de adaptarem as suas atividades ao novo confinamento.
Para o futuro, o CRUP vai bater-se pela efetiva aplicação do modelo de financiamento do ensino superior, pelo regresso das instituições à autonomia plena definida na Constituição de 1976, por um novo sistema de gestão dos incentivos comunitários destinados ao ensino superior, à ciência e à tecnologia (visando uma distribuição equilibrada, justa e transparente dos novos fundos europeus), pelo investimento na requalificação e reequipamento das universidades (através, sobretudo, do novo quadro comunitário de apoio). Vai também bater-se pelo reforço da proteção social dos estudantes (o que passa muito pela cabal execução do Plano Nacional de Alojamento do Ensino Superior), pela melhoria das condições laborais de docentes e investigadores e pela clarificação das relações institucionais e operacionais entre as universidades e as unidades de investigação, centros de competências e institutos de interface.