Notícia
Quando a morte bate à porta das empresas
Em O Mito de Sísifo, o escritor e filósofo Albert Camus, afirmava que o suicídio constituía o mais sério problema filosófico. Em França, mas não só, este passou a ser igualmente um sério problema de gestão.
23 de Outubro de 2009 às 18:59
Em O Mito de Sísifo, o escritor e filósofo Albert Camus, afirmava que o suicídio constituía o mais sério problema filosófico. Em França, mas não só, este passou a ser igualmente um sério problema de gestão.
E, apesar de as estatísticas não confirmarem que os 25 suicídios ocorridos na France Telecom, nos últimos 18 meses, estão directamente ligados com uma questão de “gestão pelo terror”, a verdade é que este fenómeno nos obriga a repensar a vida (e também a morte) nas estruturas organizacionais da actualidade.
Por muito que o conselho de administração da France Telecom (FT) se tenha apoiado nos dados estatísticos para negar uma relação causa-efeito entre as políticas agressivas de gestão do gigante das telecomunicações e os casos de suicídio de 25 dos seus empregados (e 13 tentativas), a verdade é que é difícil fechar os olhos às notas deixadas pelos colaboradores e que culpam só e somente as condições de trabalho na FT para dizerem adeus às suas vidas. Igualmente difícil de ignorar é o caso de um dos trabalhadores da mesma empresa se ter apunhalado no estômago no meio de uma reunião afirmando que estava “farto” (embora tenha depois sobrevivido). Ou os demais casos de morte por ingestão de comprimidos, enforcamento ou lançamento de pontes e janelas, em certos casos, nas próprias instalações da empresa.
Mas voltemos aos números. A média nacional de suicídios em França situa-se entre os 16,5 e 17,6 por cada 100 mil habitantes. Ora, a France Telecom, com 102 mil empregados, “apenas” registou 25 casos em 18 meses, o que corresponde a um valor de 16 – ou seja, abaixo da média acima descrita. Por outro lado, a mesma empresa regista um valor de 29 suicídios em 2002 e de 22 em 2003, o que, de acordo com as cifras, poderia ser descrito como um aspecto “positivo”, na medida em que o número apresentou algumas melhorias. Contudo, como estamos a falar de vidas humanas, as estatísticas perdem o seu valor, pelo menos para aqueles que consideram os seus colaboradores como mais do que meros recursos.
Por outro lado, e não fosse a pressão dos media e dos sindicatos, talvez a France Telecom não se tivesse visto obrigada a enviar, na passada segunda-feira, 19, um questionário aos seus 102 mil empregados, com 160 perguntas sobre stress laboral e a prometer medidas para acabar com esta “espiral infernal” – como lhe chamou o responsável da empresa Didier Lombard – de suicídios. Disponível está já uma linha gratuita para empregados deprimidos que os coloca em contacto com psicólogos externos e a promessa de uma nova política de recursos humanos concebida para diminuir o stress e que deverá estar concluída até Dezembro deste ano. A France Telecom está igualmente a ser alvo de uma auditoria por parte de uma empresa especializada em questões de stress e medicina do trabalho, a Technologia que, para além de ser a responsável pela elaboração e resultados do inquérito acima mencionado, fará igualmente um relatório pormenorizado sobre as condições de trabalho a que estão a ser submetidos os empregados da FT.
Em termos gerais, o descontentamento dos empregados da empresa de telecomunicações francesa deve-se à complexa transição de uma empresa que já foi monopólio do Estado para passar a ser uma multinacional. Em 1997, a empresa abriu o seu capital e transformou-se numa “mais magra” France Telecom, com a Orange como marca principal. Actualmente, é a terceira maior operadora móvel da Europa e a maior fornecedora de banda larga. Mesmo com o Estado ainda detentor de uma quota maioritária da FT, a mudança para a privatização obrigou a um novo estilo de gestão, mais concentrado no lucro e na produtividade, de acordo com a análise de sindicatos e comités especializados em questões laborais.
Como afirmou Patrice Diochet, representante do sindicato francês CFCT (Confédération Française des Travailleurs Chrétiens), “já não existe qualquer tipo de humanidade. Apenas conta o negócio”. A CFTC foi uma das primeiras entidades a demonstrar publicamente o seu choque face à vaga de suicídios na operadora e a pedir a intervenção de uma comissão parlamentar para analisar o caso. “As dificuldades emocionais experimentadas pelo pessoal no interior da FT são resultado do ritmo frenético de mudança imposto pela empresa para preservar a sua posição competitiva, sem dar a atenção necessária às consequências negativas que as mudanças infligem nas vidas dos trabalhadores”, acrescenta ainda o presidente da CFTC, Marc Maouche.
As mudanças estruturais ocorridas na empresa parecem constituir, assim, as principais razões para o clima que se vive actualmente na empresa francesa: 22 mil postos de trabalho “desapareceram” desde 2006, 10 mil empregados foram já forçados a mudar de posto de trabalho, as pressões para o aumento de produtividade não param, os empregados são ameaçados e extremamente controlados e métodos “pobres” de gestão são apontados por inúmeros colaboradores e representantes dos sindicatos. As transferências arbitrárias – de que são exemplo técnicos a serem colocados no serviço a cliente sem qualquer tipo de formação para a função ou trabalhadores seniores que já não são “muito produtivos” e são transferidos para call centres – são apenas algumas das formas de gestão que resultam em pressão constante, ansiedade e insegurança. Tudo isto aliado ao clima de desemprego crescente, falências de empresas e rondas massivas de layoffs. E, como cereja no topo do bolo, as declarações de Olivier Barberot, responsável pelo departamento de relações humanas (?) da FT: “Não é assim tão dramático. Já vi pior”, relativamente ao número de suicídios ocorridos em anos anteriores. O próprio Lombard considerou, pelo menos no início desta história infeliz, que estes suicídios foram “mais uma questão de relações públicas do que qualquer outra coisa”. Ou seja, considerando que todas estas chamadas de atenção nos media constituíam parte do problema. “São dramas que acontecem”, declarou, alertando igualmente para a natureza contagiosa dos suicídios: “Quanto mais se fala sobre este tipo de assunto, mais o problema se agrava nas cabeças das pessoas que estão psicologicamente instáveis”, afirmou.
Felicidade versus lucro
Apesar de a França estar agora nas bocas do mundo, o problema não se confina ao país da Torre Eiffel. O Gabinete Americano de Estatísticas Laborais calcula que o número de suicídios relacionados com questões de trabalho tenha aumentado 27 por cento entre 2007 e 2008, uma taxa contudo inferior à da Europa. Contudo, o suicídio é apenas a ponta de um enorme iceberg de questões relacionadas com a infelicidade no local de trabalho.
De acordo com um estudo elaborado pela consultora norte-americana Centre for Work-Life Policy, entre Junho de 2007 e Dezembro de 2008, a proporção de trabalhadores que professava lealdade relativamente aos seus empregadores caiu de 95 por cento para 39 por cento; no que respeita à confiança, a queda foi de 79 por cento para 22 por cento. Um outro estudo, com dados mais recentes e levado a cabo por uma outra consultora norte-americana, a DDI, revelou que mais de metade dos inquiridos descreve o seu trabalho como “estagnado”, o que neste contexto significa que não têm nada de estimulante que os mova, para além de escassas esperanças de virem a ser promovidos.
As explicações para a onda de suicídios que está a ocorrer em França não são de todo unânimes. No ranking dos países com maiores taxas de suicídio, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, a França aparece em 20º lugar, o Canadá em 40º, os Estados Unidos em 43º e a Inglaterra em 66º. A Rússia, a Lituânia e Bielorrússia, em conjunto com o Japão, lideram esta mórbida lista. E não é a primeira vez que a França aparece nas notícias por causa deste tema. Em 2008, foi a Renault que deu um grito de alerta para o caso. A tentativa de suicídio por parte de sete trabalhadores do Technocentre, cinco das quais bem-sucedidas e duas delas ocorridas no próprio complexo da fábrica. Uma mera coincidência estatística? Os indícios, infelizmente, apontavam para algo muito mais grave. O estilo de gestão de Carlos Goshn, CEO do gigante automóvel, pode ser considerado como uma versão ocidental do kaizen, o popular método de aperfeiçoamento contínuo japonês: acelera-se primeiro o processo e de seguida força-se os trabalhadores a fazerem o que é necessário para o acompanhar. E depois dos dois primeiros suicídios terem sido considerados pelo ministro da Saúde francês como “acidentes de trabalho” – uma categoria muito pouco comum para albergar casos de suicídio a não ser que estejam indiscutivelmente relacionados com condições laborais –, a gota de água deu-se quando um engenheiro de 39 anos saltou para a morte num dos edifícios do complexo, facto testemunhado por vários dos seus colegas. Mais dois suicídios se seguiram e o quinto deixou expresso numa nota uma mensagem para o CEO: “Digam ao Senhor Goshn que não consigo aguentar mais a pressão”. [a Renault foi ontem a tribunal, depois da viúva de um dos seus antigos trabalhadores ter conseguido levar o caso de suicídio do marido às instâncias legais].
Ora, o teor das mensagens deixadas por vários dos 25 trabalhadores da France Telecom que optaram por pôr fim à vida nos últimos meses, é absolutamente similar ao deste trabalhador malogrado da Renault. “Vou cometer suicídio por causa do meu trabalho na France Telecom. Esta é a única razão”, escreveu um empregado de 52 anos que se suicidou em Marselha, culpando igualmente o “excesso de trabalho” a “gestão pelo terror”.
E a France Telecom não poderá sacudir facilmente a água do seu capote: em 2008, num inquérito realizado aos empregados, dois terços destes reportaram “uma enorme pressão”, algo que parece comum às empresas de automóveis. Mas não só. A obrigatoriedade de aumentar a produtividade, tipicamente acompanhada por uma obsessão de se avaliar a performance pode ser um dos motivos que levam a este tipo de consequências. Os gigantes do retalho, por exemplo, utilizam, muitas vezes, um software de “gestão da força de trabalho” que monitoriza quantos segundos são necessários para fazer um scan dos produtos existentes num cabaz de mercearia. E no Japão, existem até algumas empresas que monitorizam o número de vezes que os seus vendedores sorriem enquanto atendem um cliente. Mas existem mais exemplos. A Microsoft, de acordo com uma piada já antiga, é conhecida por oferecer aos seus trabalhadores um horário flexível: “você pode escolher qualquer turno de 18 horas que lhe apeteça”.
Responsabilidade individual ou colectiva?
As reacções por parte de sindicatos, trabalhadores e analistas colocam as culpas destas situações nas costas de muitas “entidades”: no capitalismo, no comércio global ou no tipo de má gestão praticada por empresas como a France Telecom. A realocação de trabalhadores em postos que nada têm a ver com as suas anteriores funções ou a redundância de tarefas noutros casos aparecem como causas suficientemente fortes para a infelicidade dos colaboradores.
Uma outra teoria, já aflorada anteriormente, aponta para a síndroma do copycat e foi, até á exaustão, a defendida por Didier Lombard. Apesar de mais tarde ter pedido desculpas publicamente, o CEO da FT não se coibiu de afirmar que a história dos suicídios na sua empresa era “uma questão de moda”.
Contudo e independentemente das inúmeras causas subjacentes à situação, seria também ir longe de mais culpar apenas as práticas de gestão pelo stress e depressão em que se encontram inúmeros trabalhadores por este mundo fora. A questão que se coloca é se o suicídio é um acto meramente individual ou se, nestes casos em particular, representam uma resposta colectiva a estratégias de gestão desumanas implementadas por certas empresas. E existe forma de colocar um ponto final nesta série de trágicos eventos?
O Jornal francês Le Figaro tem vindo a entrevistar vários psiquiatras que, em conjunto, não têm nenhuma resposta unificada para estas questões, mas que concordam na condenação de análises demasiado simplistas.
No geral, todos consideram que o problema deve ser considerado relativo, na medida em que a taxa de suicídios ainda não é “excepcional” comparativamente aos níveis nacionais. Mas, ao mesmo tempo, alertam para um “pequeno” pormenor: o de que as taxas de suicídio costumam ser mais elevadas entre os desempregados e que ter trabalho é, supostamente, uma forma de reduzir as oportunidades estatísticas para se cometer suicídio. Os psiquiatras inquiridos concluem assim que uma abordagem mais realista para o caso da France Telecom deveria residir na comparação das taxas de suicídio entre grandes empresas e não com as da população francesa. E existe outro sinal de alarme: o facto de mais de um terço dos suicídios ocorridos na France Telecom terem tido lugar nas instalações da própria empresa.
Como afirma a Professora Françoise facy, directora do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica, “ a inactividade é, geralmente, a principal causa de suicídio no trabalho. O sector mais atingido é o da agricultura”, diz. “Mas mesmo que não exista uma sobre-representação de suicídios na France Telecom, o facto de se escolher as instalações da empresa para o cometer, tem de ser visto como um sintoma de um mal-estar instalado e que exige a atenção para o mesmo”.
Já o psiquiatra Michel Botbol tenta uma outra interpretação: “o suicídio é, acima de tudo, um acto individual, mas que pode estar relacionado com um problema colectivo”. Para Botbol, não é possível definir o suicídio como um acto desesperado relacionado apenas com decisões por parte da gestão das empresas, mas também não é possível isolá-lo desse contexto. Ou seja e como sublinha, “se a empresa trata mal as pessoas e as empurra para o desespero, esse acto de desespero acaba por se transformar num conflito laboral”, Contudo, o psiquiatra ressalva o facto de, apesar de não se poder ignorar o relacionamento existente com o local de trabalho, “seria abusivo acreditar que este é a única razão para o suicídio”.
Jean-Louis Terra ensina psiquiatria em Lyon e aborda a questão de uma outra forma. “O trabalho devia ser, supostamente, um factor de protecção contra o suicídio através da segurança financeira que confere e da identidade profissional e papel social que oferece”. Assim e como questiona o professor, será que existe alguma mudança profunda nestes termos? “Podem os trabalhadores conscienciosos obter estas satisfações num trabalho que não só perdeu a sua identidade mas que também impõe objectivos impossíveis de atingir?”, pergunta.
Por último, um outro psiquiatra que optou pelo anonimato, defende que não é necessariamente o excesso de trabalho ou as longas jornadas que são mais difíceis de suportar, mas a solidão existente no local de trabalho e o sentimento expresso pela vítima de que ninguém manifesta qualquer tipo de interesse nela a nível pessoal e que as forças de mercado constituem o único factor relevante no trabalho.
Contudo e sejam quais forem as verdadeiras razões, estes casos constituem um grito de alerta não só para as empresas, mas para a sociedade enquanto um todo. Mas aos gestores podemos sempre perguntar quais os limites de exigência que podem ser pedidos a um trabalhador e que papel têm as pessoas, e não os recursos, no cenário empresarial? Os psiquiatras não respondem.
E, apesar de as estatísticas não confirmarem que os 25 suicídios ocorridos na France Telecom, nos últimos 18 meses, estão directamente ligados com uma questão de “gestão pelo terror”, a verdade é que este fenómeno nos obriga a repensar a vida (e também a morte) nas estruturas organizacionais da actualidade.
Mas voltemos aos números. A média nacional de suicídios em França situa-se entre os 16,5 e 17,6 por cada 100 mil habitantes. Ora, a France Telecom, com 102 mil empregados, “apenas” registou 25 casos em 18 meses, o que corresponde a um valor de 16 – ou seja, abaixo da média acima descrita. Por outro lado, a mesma empresa regista um valor de 29 suicídios em 2002 e de 22 em 2003, o que, de acordo com as cifras, poderia ser descrito como um aspecto “positivo”, na medida em que o número apresentou algumas melhorias. Contudo, como estamos a falar de vidas humanas, as estatísticas perdem o seu valor, pelo menos para aqueles que consideram os seus colaboradores como mais do que meros recursos.
Por outro lado, e não fosse a pressão dos media e dos sindicatos, talvez a France Telecom não se tivesse visto obrigada a enviar, na passada segunda-feira, 19, um questionário aos seus 102 mil empregados, com 160 perguntas sobre stress laboral e a prometer medidas para acabar com esta “espiral infernal” – como lhe chamou o responsável da empresa Didier Lombard – de suicídios. Disponível está já uma linha gratuita para empregados deprimidos que os coloca em contacto com psicólogos externos e a promessa de uma nova política de recursos humanos concebida para diminuir o stress e que deverá estar concluída até Dezembro deste ano. A France Telecom está igualmente a ser alvo de uma auditoria por parte de uma empresa especializada em questões de stress e medicina do trabalho, a Technologia que, para além de ser a responsável pela elaboração e resultados do inquérito acima mencionado, fará igualmente um relatório pormenorizado sobre as condições de trabalho a que estão a ser submetidos os empregados da FT.
Em termos gerais, o descontentamento dos empregados da empresa de telecomunicações francesa deve-se à complexa transição de uma empresa que já foi monopólio do Estado para passar a ser uma multinacional. Em 1997, a empresa abriu o seu capital e transformou-se numa “mais magra” France Telecom, com a Orange como marca principal. Actualmente, é a terceira maior operadora móvel da Europa e a maior fornecedora de banda larga. Mesmo com o Estado ainda detentor de uma quota maioritária da FT, a mudança para a privatização obrigou a um novo estilo de gestão, mais concentrado no lucro e na produtividade, de acordo com a análise de sindicatos e comités especializados em questões laborais.
Como afirmou Patrice Diochet, representante do sindicato francês CFCT (Confédération Française des Travailleurs Chrétiens), “já não existe qualquer tipo de humanidade. Apenas conta o negócio”. A CFTC foi uma das primeiras entidades a demonstrar publicamente o seu choque face à vaga de suicídios na operadora e a pedir a intervenção de uma comissão parlamentar para analisar o caso. “As dificuldades emocionais experimentadas pelo pessoal no interior da FT são resultado do ritmo frenético de mudança imposto pela empresa para preservar a sua posição competitiva, sem dar a atenção necessária às consequências negativas que as mudanças infligem nas vidas dos trabalhadores”, acrescenta ainda o presidente da CFTC, Marc Maouche.
As mudanças estruturais ocorridas na empresa parecem constituir, assim, as principais razões para o clima que se vive actualmente na empresa francesa: 22 mil postos de trabalho “desapareceram” desde 2006, 10 mil empregados foram já forçados a mudar de posto de trabalho, as pressões para o aumento de produtividade não param, os empregados são ameaçados e extremamente controlados e métodos “pobres” de gestão são apontados por inúmeros colaboradores e representantes dos sindicatos. As transferências arbitrárias – de que são exemplo técnicos a serem colocados no serviço a cliente sem qualquer tipo de formação para a função ou trabalhadores seniores que já não são “muito produtivos” e são transferidos para call centres – são apenas algumas das formas de gestão que resultam em pressão constante, ansiedade e insegurança. Tudo isto aliado ao clima de desemprego crescente, falências de empresas e rondas massivas de layoffs. E, como cereja no topo do bolo, as declarações de Olivier Barberot, responsável pelo departamento de relações humanas (?) da FT: “Não é assim tão dramático. Já vi pior”, relativamente ao número de suicídios ocorridos em anos anteriores. O próprio Lombard considerou, pelo menos no início desta história infeliz, que estes suicídios foram “mais uma questão de relações públicas do que qualquer outra coisa”. Ou seja, considerando que todas estas chamadas de atenção nos media constituíam parte do problema. “São dramas que acontecem”, declarou, alertando igualmente para a natureza contagiosa dos suicídios: “Quanto mais se fala sobre este tipo de assunto, mais o problema se agrava nas cabeças das pessoas que estão psicologicamente instáveis”, afirmou.
Felicidade versus lucro
Apesar de a França estar agora nas bocas do mundo, o problema não se confina ao país da Torre Eiffel. O Gabinete Americano de Estatísticas Laborais calcula que o número de suicídios relacionados com questões de trabalho tenha aumentado 27 por cento entre 2007 e 2008, uma taxa contudo inferior à da Europa. Contudo, o suicídio é apenas a ponta de um enorme iceberg de questões relacionadas com a infelicidade no local de trabalho.
De acordo com um estudo elaborado pela consultora norte-americana Centre for Work-Life Policy, entre Junho de 2007 e Dezembro de 2008, a proporção de trabalhadores que professava lealdade relativamente aos seus empregadores caiu de 95 por cento para 39 por cento; no que respeita à confiança, a queda foi de 79 por cento para 22 por cento. Um outro estudo, com dados mais recentes e levado a cabo por uma outra consultora norte-americana, a DDI, revelou que mais de metade dos inquiridos descreve o seu trabalho como “estagnado”, o que neste contexto significa que não têm nada de estimulante que os mova, para além de escassas esperanças de virem a ser promovidos.
As explicações para a onda de suicídios que está a ocorrer em França não são de todo unânimes. No ranking dos países com maiores taxas de suicídio, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, a França aparece em 20º lugar, o Canadá em 40º, os Estados Unidos em 43º e a Inglaterra em 66º. A Rússia, a Lituânia e Bielorrússia, em conjunto com o Japão, lideram esta mórbida lista. E não é a primeira vez que a França aparece nas notícias por causa deste tema. Em 2008, foi a Renault que deu um grito de alerta para o caso. A tentativa de suicídio por parte de sete trabalhadores do Technocentre, cinco das quais bem-sucedidas e duas delas ocorridas no próprio complexo da fábrica. Uma mera coincidência estatística? Os indícios, infelizmente, apontavam para algo muito mais grave. O estilo de gestão de Carlos Goshn, CEO do gigante automóvel, pode ser considerado como uma versão ocidental do kaizen, o popular método de aperfeiçoamento contínuo japonês: acelera-se primeiro o processo e de seguida força-se os trabalhadores a fazerem o que é necessário para o acompanhar. E depois dos dois primeiros suicídios terem sido considerados pelo ministro da Saúde francês como “acidentes de trabalho” – uma categoria muito pouco comum para albergar casos de suicídio a não ser que estejam indiscutivelmente relacionados com condições laborais –, a gota de água deu-se quando um engenheiro de 39 anos saltou para a morte num dos edifícios do complexo, facto testemunhado por vários dos seus colegas. Mais dois suicídios se seguiram e o quinto deixou expresso numa nota uma mensagem para o CEO: “Digam ao Senhor Goshn que não consigo aguentar mais a pressão”. [a Renault foi ontem a tribunal, depois da viúva de um dos seus antigos trabalhadores ter conseguido levar o caso de suicídio do marido às instâncias legais].
Ora, o teor das mensagens deixadas por vários dos 25 trabalhadores da France Telecom que optaram por pôr fim à vida nos últimos meses, é absolutamente similar ao deste trabalhador malogrado da Renault. “Vou cometer suicídio por causa do meu trabalho na France Telecom. Esta é a única razão”, escreveu um empregado de 52 anos que se suicidou em Marselha, culpando igualmente o “excesso de trabalho” a “gestão pelo terror”.
E a France Telecom não poderá sacudir facilmente a água do seu capote: em 2008, num inquérito realizado aos empregados, dois terços destes reportaram “uma enorme pressão”, algo que parece comum às empresas de automóveis. Mas não só. A obrigatoriedade de aumentar a produtividade, tipicamente acompanhada por uma obsessão de se avaliar a performance pode ser um dos motivos que levam a este tipo de consequências. Os gigantes do retalho, por exemplo, utilizam, muitas vezes, um software de “gestão da força de trabalho” que monitoriza quantos segundos são necessários para fazer um scan dos produtos existentes num cabaz de mercearia. E no Japão, existem até algumas empresas que monitorizam o número de vezes que os seus vendedores sorriem enquanto atendem um cliente. Mas existem mais exemplos. A Microsoft, de acordo com uma piada já antiga, é conhecida por oferecer aos seus trabalhadores um horário flexível: “você pode escolher qualquer turno de 18 horas que lhe apeteça”.
Responsabilidade individual ou colectiva?
As reacções por parte de sindicatos, trabalhadores e analistas colocam as culpas destas situações nas costas de muitas “entidades”: no capitalismo, no comércio global ou no tipo de má gestão praticada por empresas como a France Telecom. A realocação de trabalhadores em postos que nada têm a ver com as suas anteriores funções ou a redundância de tarefas noutros casos aparecem como causas suficientemente fortes para a infelicidade dos colaboradores.
Uma outra teoria, já aflorada anteriormente, aponta para a síndroma do copycat e foi, até á exaustão, a defendida por Didier Lombard. Apesar de mais tarde ter pedido desculpas publicamente, o CEO da FT não se coibiu de afirmar que a história dos suicídios na sua empresa era “uma questão de moda”.
Contudo e independentemente das inúmeras causas subjacentes à situação, seria também ir longe de mais culpar apenas as práticas de gestão pelo stress e depressão em que se encontram inúmeros trabalhadores por este mundo fora. A questão que se coloca é se o suicídio é um acto meramente individual ou se, nestes casos em particular, representam uma resposta colectiva a estratégias de gestão desumanas implementadas por certas empresas. E existe forma de colocar um ponto final nesta série de trágicos eventos?
O Jornal francês Le Figaro tem vindo a entrevistar vários psiquiatras que, em conjunto, não têm nenhuma resposta unificada para estas questões, mas que concordam na condenação de análises demasiado simplistas.
No geral, todos consideram que o problema deve ser considerado relativo, na medida em que a taxa de suicídios ainda não é “excepcional” comparativamente aos níveis nacionais. Mas, ao mesmo tempo, alertam para um “pequeno” pormenor: o de que as taxas de suicídio costumam ser mais elevadas entre os desempregados e que ter trabalho é, supostamente, uma forma de reduzir as oportunidades estatísticas para se cometer suicídio. Os psiquiatras inquiridos concluem assim que uma abordagem mais realista para o caso da France Telecom deveria residir na comparação das taxas de suicídio entre grandes empresas e não com as da população francesa. E existe outro sinal de alarme: o facto de mais de um terço dos suicídios ocorridos na France Telecom terem tido lugar nas instalações da própria empresa.
Como afirma a Professora Françoise facy, directora do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica, “ a inactividade é, geralmente, a principal causa de suicídio no trabalho. O sector mais atingido é o da agricultura”, diz. “Mas mesmo que não exista uma sobre-representação de suicídios na France Telecom, o facto de se escolher as instalações da empresa para o cometer, tem de ser visto como um sintoma de um mal-estar instalado e que exige a atenção para o mesmo”.
Já o psiquiatra Michel Botbol tenta uma outra interpretação: “o suicídio é, acima de tudo, um acto individual, mas que pode estar relacionado com um problema colectivo”. Para Botbol, não é possível definir o suicídio como um acto desesperado relacionado apenas com decisões por parte da gestão das empresas, mas também não é possível isolá-lo desse contexto. Ou seja e como sublinha, “se a empresa trata mal as pessoas e as empurra para o desespero, esse acto de desespero acaba por se transformar num conflito laboral”, Contudo, o psiquiatra ressalva o facto de, apesar de não se poder ignorar o relacionamento existente com o local de trabalho, “seria abusivo acreditar que este é a única razão para o suicídio”.
Jean-Louis Terra ensina psiquiatria em Lyon e aborda a questão de uma outra forma. “O trabalho devia ser, supostamente, um factor de protecção contra o suicídio através da segurança financeira que confere e da identidade profissional e papel social que oferece”. Assim e como questiona o professor, será que existe alguma mudança profunda nestes termos? “Podem os trabalhadores conscienciosos obter estas satisfações num trabalho que não só perdeu a sua identidade mas que também impõe objectivos impossíveis de atingir?”, pergunta.
Por último, um outro psiquiatra que optou pelo anonimato, defende que não é necessariamente o excesso de trabalho ou as longas jornadas que são mais difíceis de suportar, mas a solidão existente no local de trabalho e o sentimento expresso pela vítima de que ninguém manifesta qualquer tipo de interesse nela a nível pessoal e que as forças de mercado constituem o único factor relevante no trabalho.
Contudo e sejam quais forem as verdadeiras razões, estes casos constituem um grito de alerta não só para as empresas, mas para a sociedade enquanto um todo. Mas aos gestores podemos sempre perguntar quais os limites de exigência que podem ser pedidos a um trabalhador e que papel têm as pessoas, e não os recursos, no cenário empresarial? Os psiquiatras não respondem.