Notícia
Nos limites da crise
"Há limites para o que os cidadãos podem aguentar", disse, no final de 2010, Cavaco Silva, a propósito da apresentação da Campanha “Direito à Alimentação”, graças à qual os restaurantes vão poder doar refeições às instituições de apoio às pessoas carenciadas.
18 de Março de 2011 às 16:18
"Há limites para o que os cidadãos podem aguentar", disse, no final de 2010, Cavaco Silva, a propósito da apresentação da Campanha “Direito à Alimentação”, graças à qual os restaurantes vão poder doar refeições às instituições de apoio às pessoas carenciadas. Contornadas as questões de lei que impediam esta rede social – extensível às cantinas de escolas, hospitais, etc. - de actuar, resta ainda criar um regime de excepção para que não seja cobrado IVA sobre estas refeições. O VER conversou com o mentor da petição “Contra o Desperdício Alimentar” e com o presidente da Cáritas, sobre esta causa nacional
POR GABRIELA COSTA
António Costa Pereira, cidadão português, piloto de profissão, pode sentir-se orgulhoso de, sozinho, ter juntado uma pequena multidão à volta de uma causa social cada vez mais real no País: a fome. Contra ela, era “moralmente obrigatório” dissociar dois conceitos - Saúde Pública e Desperdício Alimentar -, ligados entre si através de “uma lei absurda”: um diploma comunitário de 2002, transposto para a legislação nacional ao abrigo da Lei de Saúde Pública, que obrigava, até há bem pouco tempo, ao desperdício diário de 35 a cinquenta mil refeições diárias, segundo as estimativas de António Pereira.
A realidade é que todos os dias um grande número de refeições, completas e em perfeitas condições de consumo, são deitadas fora nos refeitórios de empresas, escolas, universidades, hospitais, prisões e restaurantes, alegadamente “por razões de saúde pública”. E enquanto uns mandam o que sobra para o lixo, outros – cada vez mais portugueses - procuram nele o alimento mínimo para a sua subsistência.
A alteração à lei, introduzida há já oito anos na sequência da norma europeia, permitindo que todos os alimentos em perfeitas condições possam ser “verificados, acondicionados, transportados e distribuídos a quem precisa” é hoje “uma questão social bem actual, real e concreta”, comenta ao VER o piloto de longo curso. Trata-se, aliás, de uma questão que “se é tecnicamente possível, é moralmente obrigatória”.
“Confortáveis na nossa abundância, perdemos de vista o mundo real”
Passaram mais de dois anos desde que António Costa Pereira arregaçou as mangas por esta causa: começou por contactar a Presidência da República, que remeteu o assunto para o Governo. Contactado este último, “responderam-me que iam pensar no assunto”. Sem querer abdicar dos seus direitos cívicos, o piloto procurou então chegar ao contacto com deputados de três grupos parlamentares, novamente sem sucesso.
Como para grandes males, grandes remédios, a mediatização do tema nas redes sociais, principalmente com a criação no Facebook do movimento “Acabar com o Desperdício Alimentar” e o lançamento da petição Desperdício Alimentar (que recolheu já mais de 69 500 assinaturas, tendo registado, só na primeira semana, uma participação que ascendeu das 5800 às 34 mil assinaturas), foram o mote para trazer a polémica às agendas.
A partir daí, os apelos remetidos à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) tiveram eco – com esta a garantir apoio para “vir a ser parte da solução”; arrancou, em Oeiras, um projecto-piloto para formação e garantia da distribuição dos alimentos em boas condições de segurança, envolvendo a ASAE; os cinco grupos parlamentares reuniram com António Pereira (o CDS-PP apresentou mesmo uma moção contra o desperdício alimentar que a Câmara de Lisboa aprovou por unanimidade, permitindo à autarquia a criação de um programa que evite que as sobras de muitos dos restaurantes e cantinas de Lisboa vão parar ao lixo); e o presidente da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal manifestou-se disponível para envolver os restaurantes nesta acção nacional de doação de alimentos às pessoas carenciadas.
A Associação avançou mesmo com o lançamento, a 10 de Dezembro de 2010, da “Carta do Direito à Alimentação” e de uma campanha de solidariedade social dedicada ao “Direito à Alimentação”, que merece o alto patrocínio do presidente da República. Cavaco Silva louvou esta iniciativa “destinada a combater um dos flagelos que, de modo envergonhado e silencioso, se tem propagado pelos estratos menos favorecidos da sociedade portuguesa: a falta de acesso a uma alimentação condigna”, considerando que esta “constituí um verdadeiro exemplo de como as instituições da sociedade civil podem dar um valioso contributo para um Portugal mais coeso, mais unido e solidário”.
Através da Campanha Nacional para o Direito à Alimentação – DA, que arranca oficialmente no dia 4 de Abril, a AHRESP assume a responsabilidade social de criar uma Rede Nacional de Solidariedade, dirigida às famílias e aos cidadãos carenciados de alimentação, digna e suficiente. Pretende-se que adiram a esta iniciativa todas as empresas e instituições privadas e públicas, através de apoios, contributos e donativos. Desde a produção agro-pecuária, passando pela indústria e a distribuição alimentar, e indo até aos estabelecimentos de hotelaria, restauração e bebidas, todas as empresas e instituições podem participar no programa, através da adesão voluntária, garantida pela operação do BUE – Balcão Único Empresarial.
Para o presidente da AHRESP, Mário Gonçalves, perante a actual conjuntura, é urgente reforçar a cooperação com as cerca de 4.500 instituições de Solidariedade Social existentes em Portugal, confrontadas, muitas vezes, com a rotura das suas capacidades: o Balcão Único Empresarial “vai promover a adesão e operação em rede de proximidade dos nossos fornecedores e dos nossos próprios estabelecimentos, para, de forma articulada, congregar donativos, entregando-os aos municípios para estes os fazerem chegar, directamente, ou através das instituições de solidariedade do seu concelho, aos grandes destinatários da nossa preocupação, os carenciados de alimentação digna e equilibrada”.
O programa visa exclusivamente a alimentação, e vai utilizar várias valências, desde os produtos alimentares e as senhas de refeição, até às refeições confeccionadas. Apesar do prazo para a inscrição dos municípios no site da campanha (www.direitoalimentacao.org) - manifestando a sua disponibilidade para aderirem à primeira fase - terminar apenas no próximo dia 20, “é já significativo o número de adesões”. Em paralelo, e enquanto se aguarda a conclusão desta fase, o que leva a que ainda não estejam definidos os locais prioritários onde a campanha irá decorrer, já há um grande número de estabelecimentos que manifestaram a sua disponibilidade para aderir à campanha.
O que está feito...
Para António Pereira, adaptar, alterar ou interpretar a lei são variações sobre uma nota só. Faça-se o que se fizer, terá de ser feito “o que for necessário para acabar com esta situação [de desperdício alimentar], a bem de muitos portugueses que têm dificuldades e que necessitam de toda a ajuda, agora e já. Recusando render-se “à burocracia e à falta de humanidade”, o piloto da TAP defende que a única opção decente e civilizada perante as dificuldades que o país atravessa é “reagir”. Temos de ser mais exigentes connosco próprios enquanto cidadãos e com quem nos representa e governa, apela.
Mais exigentes ou não, os portugueses são, por natureza, generosos, e talvez por isso se indignem facilmente com as injustiças sociais. Com a ajuda das redes sociais, muitos milhares apoiam esta causa dedicada à doação de refeições a quem mais precisa, que depende agora da criação de um regime de excepção na lei para que os restaurantes não tenham de pagar treze por cento de IVA sobre o que doarem durante a Campanha Direito à Alimentação. O impacto da iniciativa tem sido, de resto, bem visível no pouco habitual destaque dado ao tema pela comunicação social.
Depois do êxito da petição – que se mantém online para, caso a "interpretação da lei" continue a não permitir uma operação "fazível" de aproveitamento das refeições, poder avançar para a Assembleia da República; e para manter na agenda política a consciência da “nova realidade no país: a existência de muitos novos pobres, que têm fome”) – o desafio lançado por António Pereira à Câmara Municipal de Oeiras, para, em coordenação com a ASAE e articulando todas as IPSS e empresas do concelho, recolher, acondicionar, distribuir e entregar todas as refeições em condições que sobram nos refeitórios, restaurantes, supermercados e outras estruturas do concelho, deverá em breve ser replicado para outros municípios.
Na sua opinião, será “mais eficaz que o projecto funcione em parcerias locais, com a ‘condução’ das Câmaras Municipais, pois cada local tem os seus problemas e as suas soluções próprias”. À semelhança de Oeiras, também a Câmara Municipal de Lisboa abraçou este projecto e já foi nomeada uma equipa camarária para começar o trabalho. Em câmaras como a do Funchal, Mealhada, Setúbal, Loures ou Anadia foram apresentadas, votadas e aprovadas moções para “Acabar com o Desperdício Alimentar” nos concelhos.
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POR GABRIELA COSTA
António Costa Pereira, cidadão português, piloto de profissão, pode sentir-se orgulhoso de, sozinho, ter juntado uma pequena multidão à volta de uma causa social cada vez mais real no País: a fome. Contra ela, era “moralmente obrigatório” dissociar dois conceitos - Saúde Pública e Desperdício Alimentar -, ligados entre si através de “uma lei absurda”: um diploma comunitário de 2002, transposto para a legislação nacional ao abrigo da Lei de Saúde Pública, que obrigava, até há bem pouco tempo, ao desperdício diário de 35 a cinquenta mil refeições diárias, segundo as estimativas de António Pereira.
A alteração à lei, introduzida há já oito anos na sequência da norma europeia, permitindo que todos os alimentos em perfeitas condições possam ser “verificados, acondicionados, transportados e distribuídos a quem precisa” é hoje “uma questão social bem actual, real e concreta”, comenta ao VER o piloto de longo curso. Trata-se, aliás, de uma questão que “se é tecnicamente possível, é moralmente obrigatória”.
“Confortáveis na nossa abundância, perdemos de vista o mundo real”
Passaram mais de dois anos desde que António Costa Pereira arregaçou as mangas por esta causa: começou por contactar a Presidência da República, que remeteu o assunto para o Governo. Contactado este último, “responderam-me que iam pensar no assunto”. Sem querer abdicar dos seus direitos cívicos, o piloto procurou então chegar ao contacto com deputados de três grupos parlamentares, novamente sem sucesso.
Como para grandes males, grandes remédios, a mediatização do tema nas redes sociais, principalmente com a criação no Facebook do movimento “Acabar com o Desperdício Alimentar” e o lançamento da petição Desperdício Alimentar (que recolheu já mais de 69 500 assinaturas, tendo registado, só na primeira semana, uma participação que ascendeu das 5800 às 34 mil assinaturas), foram o mote para trazer a polémica às agendas.
A partir daí, os apelos remetidos à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) tiveram eco – com esta a garantir apoio para “vir a ser parte da solução”; arrancou, em Oeiras, um projecto-piloto para formação e garantia da distribuição dos alimentos em boas condições de segurança, envolvendo a ASAE; os cinco grupos parlamentares reuniram com António Pereira (o CDS-PP apresentou mesmo uma moção contra o desperdício alimentar que a Câmara de Lisboa aprovou por unanimidade, permitindo à autarquia a criação de um programa que evite que as sobras de muitos dos restaurantes e cantinas de Lisboa vão parar ao lixo); e o presidente da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal manifestou-se disponível para envolver os restaurantes nesta acção nacional de doação de alimentos às pessoas carenciadas.
A Associação avançou mesmo com o lançamento, a 10 de Dezembro de 2010, da “Carta do Direito à Alimentação” e de uma campanha de solidariedade social dedicada ao “Direito à Alimentação”, que merece o alto patrocínio do presidente da República. Cavaco Silva louvou esta iniciativa “destinada a combater um dos flagelos que, de modo envergonhado e silencioso, se tem propagado pelos estratos menos favorecidos da sociedade portuguesa: a falta de acesso a uma alimentação condigna”, considerando que esta “constituí um verdadeiro exemplo de como as instituições da sociedade civil podem dar um valioso contributo para um Portugal mais coeso, mais unido e solidário”.
Através da Campanha Nacional para o Direito à Alimentação – DA, que arranca oficialmente no dia 4 de Abril, a AHRESP assume a responsabilidade social de criar uma Rede Nacional de Solidariedade, dirigida às famílias e aos cidadãos carenciados de alimentação, digna e suficiente. Pretende-se que adiram a esta iniciativa todas as empresas e instituições privadas e públicas, através de apoios, contributos e donativos. Desde a produção agro-pecuária, passando pela indústria e a distribuição alimentar, e indo até aos estabelecimentos de hotelaria, restauração e bebidas, todas as empresas e instituições podem participar no programa, através da adesão voluntária, garantida pela operação do BUE – Balcão Único Empresarial.
Para o presidente da AHRESP, Mário Gonçalves, perante a actual conjuntura, é urgente reforçar a cooperação com as cerca de 4.500 instituições de Solidariedade Social existentes em Portugal, confrontadas, muitas vezes, com a rotura das suas capacidades: o Balcão Único Empresarial “vai promover a adesão e operação em rede de proximidade dos nossos fornecedores e dos nossos próprios estabelecimentos, para, de forma articulada, congregar donativos, entregando-os aos municípios para estes os fazerem chegar, directamente, ou através das instituições de solidariedade do seu concelho, aos grandes destinatários da nossa preocupação, os carenciados de alimentação digna e equilibrada”.
O programa visa exclusivamente a alimentação, e vai utilizar várias valências, desde os produtos alimentares e as senhas de refeição, até às refeições confeccionadas. Apesar do prazo para a inscrição dos municípios no site da campanha (www.direitoalimentacao.org) - manifestando a sua disponibilidade para aderirem à primeira fase - terminar apenas no próximo dia 20, “é já significativo o número de adesões”. Em paralelo, e enquanto se aguarda a conclusão desta fase, o que leva a que ainda não estejam definidos os locais prioritários onde a campanha irá decorrer, já há um grande número de estabelecimentos que manifestaram a sua disponibilidade para aderir à campanha.
O que está feito...
Para António Pereira, adaptar, alterar ou interpretar a lei são variações sobre uma nota só. Faça-se o que se fizer, terá de ser feito “o que for necessário para acabar com esta situação [de desperdício alimentar], a bem de muitos portugueses que têm dificuldades e que necessitam de toda a ajuda, agora e já. Recusando render-se “à burocracia e à falta de humanidade”, o piloto da TAP defende que a única opção decente e civilizada perante as dificuldades que o país atravessa é “reagir”. Temos de ser mais exigentes connosco próprios enquanto cidadãos e com quem nos representa e governa, apela.
Mais exigentes ou não, os portugueses são, por natureza, generosos, e talvez por isso se indignem facilmente com as injustiças sociais. Com a ajuda das redes sociais, muitos milhares apoiam esta causa dedicada à doação de refeições a quem mais precisa, que depende agora da criação de um regime de excepção na lei para que os restaurantes não tenham de pagar treze por cento de IVA sobre o que doarem durante a Campanha Direito à Alimentação. O impacto da iniciativa tem sido, de resto, bem visível no pouco habitual destaque dado ao tema pela comunicação social.
Depois do êxito da petição – que se mantém online para, caso a "interpretação da lei" continue a não permitir uma operação "fazível" de aproveitamento das refeições, poder avançar para a Assembleia da República; e para manter na agenda política a consciência da “nova realidade no país: a existência de muitos novos pobres, que têm fome”) – o desafio lançado por António Pereira à Câmara Municipal de Oeiras, para, em coordenação com a ASAE e articulando todas as IPSS e empresas do concelho, recolher, acondicionar, distribuir e entregar todas as refeições em condições que sobram nos refeitórios, restaurantes, supermercados e outras estruturas do concelho, deverá em breve ser replicado para outros municípios.
Na sua opinião, será “mais eficaz que o projecto funcione em parcerias locais, com a ‘condução’ das Câmaras Municipais, pois cada local tem os seus problemas e as suas soluções próprias”. À semelhança de Oeiras, também a Câmara Municipal de Lisboa abraçou este projecto e já foi nomeada uma equipa camarária para começar o trabalho. Em câmaras como a do Funchal, Mealhada, Setúbal, Loures ou Anadia foram apresentadas, votadas e aprovadas moções para “Acabar com o Desperdício Alimentar” nos concelhos.
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