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Ursula, Charles e o ódio ao mais alto nível
O presidente do Conselho tem passado o ano em manobras para impedir a reeleição de von der Leyen, ora apresentando-se a si próprio como alternativa possível para chefiar a Comissão, ora promovendo outras candidaturas como a do conservador grego Kyriakos Mitsotakis ou de Josep Borrell.
"Senti-me ferida e senti-me abandonada como mulher e como europeia", lamentou-se a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ante o Parlamento Europeu, a 26 de abril de 2021, ao comentar o que classificou de atitude sexista por ter sido relegada para um sofá num encontro com o presidente da Turquia, enquanto o presidente do Conselho, Charles Michel, se sentava ao lado de Recip Erdogan.
Na reunião de duas horas, em Ancara, a 7 de abril, Erdogan e Michel sentaram-se nas duas cadeiras que flanqueavam as bandeiras da Turquia e da União Europeia e o ministro turco dos negócios estrangeiros, Mevlüt Çavusoglu, e von der Leyen ficaram em sofás colocados frente a frente na sala do palácio presidencial de Ancara.
Vinha de longe, contudo, a rivalidade entre a antiga ministra da Defesa de Berlim e o ex-chefe de governo belga e teve a sua primeira manifestação pública logo no início dos mandatos dos dois políticos em dezembro de 2019.
A conservadora alemã deu mostras de querer assumir a liderança política e diplomática ao encetar logo a 7 de dezembro uma viagem a Addis Ababa para se encontrar com o presidente da Comissão da União Africana, o chadiano Moussa Mahama, e o chefe do governo da Etiópia, Abiy Ahmed, galardoado nesse ano com o Prémio Nobel da Paz.
O liberal belga seguiu na peugada da alemã e no princípio de fevereiro estava também em Addis Ababa para uma reunião com o primeiro-ministro etíope e líderes africanos presentes à Cimeira da União Africana.
Desde então sucederam-se as situações em que von der Leyen, Michel, além do socialista espanhol Josep Borrel, vice-presidente da Comissão e Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, se envolveram em incidentes protocolares e disputas sobre as posições oficiais da União Europeia.
A 19 de janeiro de 2020, em Berlim, na Conferência Internacional sobre a Líbia, von der Leyen e Borrel assinaram um comunicado sobre a posição da UE quanto às negociações para pôr termo à guerra civil e Michel divulgou outro comunicado como presidente do Conselho Europeu.
Na reta final dos mandatos os dois líderes europeus subiram a parada com os apoiantes da alemã a acirrarem as críticas à decisão anunciada pelo belga, a 6 de janeiro de 2024, de se candidatar ao Parlamento Europeu, o que o levaria a abandonar o cargo em julho.
Acusado de desprestigiar o cargo de presidente do Conselho numa manobra para procurar continuar a desempenhar um cargo relevante ou retornando à chefia do governo belga, que dirigira entre 2014 e 2019, ou na Comissão ou ainda no Parlamento Europeu, Michel voltou atrás passados vinte dias.
O presidente do Conselho tem passado o ano, desde então, em manobras para impedir a reeleição de von der Leyen, ora apresentando-se a si próprio como alternativa possível para chefiar a Comissão, ora promovendo outras candidaturas como a do conservador grego Kyriakos Mitsotakis ou de Josep Borrell.
Do lado de von der Leyen o presidente do Conselho é apresentado como um oportunista político que só procura um estatuto relevante agora que chegou ao fim da linha.
Presidentes em excesso
A alemã e o belga francófono levaram assim ao paroxismo uma rivalidade desconcertante fora dos círculos dirigentes de Bruxelas resultante da proliferação de órgãos de poder na União Europeia.
O Tratado de Lisboa de 2007 criou o cargo permanente de presidente do Conselho, eleito, ou demitido, por maioria qualificada pelos seus pares para mandato de dois anos e meio renovável uma única vez.
O cargo foi exercido primeiro, entre 2010 e 2014, pelo cristão-democrata belga flamengo Herman Van Rompuy e, de seguida, pelo conservador polaco Donald Tusk.
A presidência do Conselho da União Europeia é, por sua vez, exercida rotativamente durante seis meses por cada um dos governos dos 27 Estados Membros, sendo uma das sete instituições estabelecidas pelo Tratado a par do Conselho Europeu, Parlamento Europeu, Comissão Europeia, Tribunal de Justiça, Banco Central e Tribunal de Contas.
O candidato/a a indicação pelo Conselho Europeu à eleição de presidente da Comissão Europeia pelo Parlamento Europeu, terá de conseguir uma maioria classificada de 15 dos 27 estados, representando 65% dos 448,8 milhões de habitantes recenseados pelo Eurostat.
A subsequente eleição de presidente da Comissão Europeia, por voto secreto do Parlamento Europeu, obriga a maioria simples de 361 votos dos 720 eurodeputados.
A nomeação dos demais 26 membros da Comissão Europeia – um por cada estado, excluída a nacionalidade de quem obteve a nomeação do Conselho Europeu – terá de ser igualmente aprovada pelos eurodeputados.
Maledicência sem tréguas
Até ao anúncio formal da partilha dos cargos de presidentes da Comissão, para os conservadores, do Conselho, para socialistas e social-democratas, e de Alto Comissário, para os liberais, na cimeira de chefes de estado e de governo em Bruxelas, dias 27 e 28 deste mês, a maledicência e as especulações não param.
Fontes próximas de Michel encontravam-se entre os responsáveis da UE que denunciaram uma tentativa de von der Leyen para adiar a divulgação do relatório anual sobre o respeito pelas normas do Estado de Direito nos 27, anunciada em diversos media esta segunda-feira.
A alegada pressão do gabinete de von der Leyen sobre o Secretariado-Geral visa, segundo essas fontes, facilitar a negociação do apoio de Giorgia Meloni na discussão em curso da proposta do Conselho Europeu, que integra os chefes de estado e governo, sobre a eventual recondução da alemã à frente da Comissão que será votada pelo Parlamento Europeu a 18 deste mês.
A discussão e aprovação do relatório sobre o Estado de Direito estava prevista para dia 3 de junho e a sua publicação agendada para junho-julho de modo a proceder-se ao debate no Parlamento Europeu entre setembro e dezembro.
Os anteriores relatórios foram divulgados a 5 de julho de 2023, 13 de julho de 2022, 20 de julho de 2021 e 30 de setembro de 2020.
A elaboração e discussão dos relatórios são apresentadas como parte de um processo de diálogo entre a Comissão, o Conselho, o Parlamento Europeu e os Estados-membros, bem como os parlamentos nacionais, a sociedade civil e demais participantes partes interessadas.
O relatório relativo a 2022 identificara, nomeadamente, diversas formas de intimidação a jornalistas em Itália e recomendara a adoção de salvaguardas contra abusos da lei sobre difamação, bem como a proteção do segredo profissional e do anonimato de fontes.
Desde que Meloni assumiu a presidência do conselho de ministros de Roma, em outubro de 2022, subiram de tom as polémicas sobre alegada interferência governamental nos media, tendo ocorrido, designadamente, a 6 maio deste ano, uma greve de jornalistas da RAI – detentora dos principais canais públicos de televisão e rádio – em denúncia de ameaças à liberdade de imprensa e de expressão.
O cancelamento pela RAI3 da transmissão de uma palestra do romancista Antonio Scurati a 25 de abril – feriado pela Libertação da Itália da Ocupação nazi e do Fascismo – foi uma das últimas decisões de um canal alvo de contestação.
O autor do romance histórico M. O filho do século – primeiro volume de uma tetralogia sobre Mussolini e o regime fascista, premiado, em 2019, com o Premio Strega, o principal galardão literário italiano e traduzido em Portugal pelas Edições Asa – acusou o governo de Giorgia Meloni de "reescrever a história do fascismo".