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2015: E, pasmado, o país viu nascer a geringonça

Ninguém a previu, muitos a amaldiçoaram, mas passado ano e meio era difícil imaginar um balanço melhor. A economia cresce bem, as contas estão controladas e o PS roça a maioria absoluta.

Ninguém a previu, muitos a amaldiçoaram, mas passado ano e meio era difícil imaginar um balanço melhor. A economia cresce bem, as contas estão controladas e o PS roça a maioria absoluta.
A foto deveria incluir os três protagonistas: Jerónimo de Sousa além de António Costa e Catarina Martins. Mas essa nunca existiu, por recusa do PCP. Jorge Ferreira/PS
31 de Maio de 2017 às 13:00
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Ainda passava pouco das 22h, mas a noite já parecia estar a morrer. Na sala do Hotel Altis, António Costa preparava-se para fazer o seu discurso de derrota. Na primeira fila, os rostos pesados de Ferro Rodrigues, Carlos César e Manuel Alegre simbolizavam bem o ambiente de consternação à volta. Nesse dia 4 de Outubro, confirmara-se aquilo que as sondagens vinham apontando: a coligação Portugal à Frente, constituída pelo PSD e CDS, ficava mesmo à frente nas eleições, com 36,9% dos votos, mais 4,5 pontos do que o PS, derrotando aquele que há uns meses era o favorito, António Costa.

"O PS não alcançou os objectivos eleitorais que se propôs. Assumo por inteiro a responsabilidade política e pessoal", disse o secretário-geral socialista, provocando uma reacção de "nãos" na plateia. "Mantenham a calma" - disse Costa, sorrindo - "que vão dizer que sim", num aparte que parecia adivinhar o que viria a acontecer nas semanas seguintes.

Já depois do discurso, quando questionado pelos jornalistas se tencionava demitir-se ou liderar uma proposta de governo alternativo como haviam desafiado pouco antes o PCP e sobretudo o Bloco, Costa foi taxativo: "manifestamente, não me vou demitir", afirmou, para gáudio da audiência que aplaudiu efusivamente. Quanto à alternativa de Governo, Costa deixou tudo em aberto: "ninguém conte connosco para viabilizar a prossecução pela coligação da sua política como se essa fosse a nossa política. Mas também ninguém conte para sermos só uma maioria do contra sem condições de formarmos um governo alternativo ao da direita".

Não muito longe a conversa era outra, mas o tema o mesmo. Os rostos radiosos de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas não escondiam a satisfação. Após quatro anos e meio de profunda austeridade e da maior recessão em décadas, motivados pela bancarrota do país e resgate financeiro que se seguiu, o primeiro-ministro e vice-primeiro-ministro haviam conseguido um feito que poucos admitiam como possível um ano antes.

Mas pressentia-se um fantasma no ar motivado pela perda da maioria no Parlamento. Parecendo adivinhar o que aí vinha, Portas disse que não era "possível tentar transformar uma derrota nas urnas numa espécie de vitória de secretaria". Os dias seguintes demonstraram, perante uma direita e meio país pasmado, que era mesmo possível.

No dia 6 de Outubro, Cavaco Silva encarrega Passos Coelho de desenvolver as necessárias diligências para constituir uma "solução governativa que assegure a estabilidade política e a governabilidade do país", uma preocupação que marcará todas as intervenções do então Presidente.

Mas não é da direita do hemiciclo, agora sem maioria, que virá a solução de governo para o país. O ponto de viragem, pelo menos na percepção da opinião pública, começa a dar-se com a posição assumida pelo PCP após a primeira reunião com o PS, em que se mostra disponível para um entendimento, posição que é replicada depois pelo Bloco de Esquerda, com Catarina Martins a afirmar que "o Governo de Passos Coelho acabou". Estavam lançadas as bases para o primeiro Executivo do PS apoiado pelos partidos à sua esquerda.

As negociações do PS, então transformado no centro de todo a acção política, com a direita e com a esquerda prosseguem e gradualmente vai ganhando corpo a ideia de que António Costa está mesmo inclinado para governar à esquerda. Essa intenção é confirmada quando, a 15 de Outubro, o secretário-geral do PS anuncia, em Bruxelas, ao Partido Socialista Europeu que está em melhores condições de formar um governo estável em Portugal.

As negociações prosseguem e culminam com a assinatura, a 10 de Novembro, das famosas posições comuns assinadas de forma bilateral entre o PS e os três partidos à sua esquerda: Bloco, PCP e Os Verdes. Na altura causou estranheza que não houvesse um documento comum e, mais, que os partidos fossem incapazes de comparecer na mesma sala ao mesmo tempo para assumirem este compromisso.

Esta será sempre uma das marcas da máquina governativa que a esquerda inventou: o Governo de António Costa apoia-se em compromissos bilaterais em que nenhuma das partes abdica do seu programa ou das suas convicções. E aquilo que era uma fraqueza acabou por se transformar numa força desta solução, na medida em que lhe confere uma enorme flexibilidade que tem sido determinante para a longevidade, que poucas previram da geringonça.

Deixem passar a geringonça

Nascera a Geringonça. Ao contrário da ideia que se generalizou, não foi Vasco Pulido Valente quem baptizou dessa forma a solução governativa cunhada por António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. O cronista, na altura a escrever para o Público, usou de facto essa expressão, mas muito antes, a 31 de Agosto de 2014, e referindo-se ao PS que então era palco de uma luta pela liderança entre o António José Seguro e António Costa. Acabou por ser Paulo Portas, num discurso memorável, feito no mesmo dia em que os acordos foram assinados, que chamou geringonça à solução de entendimento encontrada à esquerda do hemiciclo.

"Não é bem um governo, é uma geringonça. Não é uma coligação, isso já se viu. Tão pouco será um acordo porque haverá vários. Supõe-se que para haver vários é porque nenhum será exactamente igual. Se nenhum for exactamente igual é porque as partes não se comprometem da mesma forma. É tal a dificuldade em conciliar o inconciliável que até nas moções de rejeição tiveram dificuldade em fazer uma só". O então ainda vice-presidente e líder do CDS terminava levantando o papão da ameaça comunista, muito em voga na altura: "temo que geringonça deixe Portugal, a sua credibilidade, a sua economia, a sorte dos nossos compatriotas à mercê das reuniões semestrais do comité central na Soeiro Pereira Gomes".

No dia 10 de Novembro, o segundo e curtíssimo governo de Passos Coelho cai e a 26 de Novembro toma posse o Executivo socialista liderado por António Costa. Em todo este processo, foi sempre evidente a resistência de Cavaco Silva que chegou a deixar no ar que poderia impedir um governo de esquerda. No final, não teve outra alternativa, e Costa avançou triunfante.

Uma geringonça que tem mesmo asas

Ficou na memória de muitos a imagem de Costa com uma vaca com asas. A analogia com a geringonça foi imediata e a geringonça mostrou mesmo ter asas para voar. Um ano e meio depois, o balanço da geringonça é tão surpreendente quanto positivo. Não só a solução governativa demonstrou ser bem mais resiliente do que se esperava, como conseguiu atingir resultados precisamente onde muita gente não os esperava.

A resiliência resultou da enorme flexibilidade desta estrutura governativa. Um governo de um só partido que apenas a este compromete. Um apoio parlamentar por três partidos, que assenta em acordos bilaterais sobre objectivos muito concretos, deixando de fora as grandes divergências programáticas, em particular a Europa e os tratados e compromissos europeus, designadamente na frente orçamental. E uma coordenação quase diária conduzida por aquele que não sendo ministro se afirmou como o verdadeiro operacional da geringonça: Pedro Nuno Santos, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. O que faz dele imprescindível não é a confiança que Costa nele deposita, é sobretudo a confiança que parece suscitar junto do PCP e do Bloco.

Quanto aos resultados, os números falam por si: o défice baixou para 2% em 2016, o valor mais baixo em democracia; a economia entrou em clara recuperação, registando um crescimento de 2,8% no primeiro trimestre; o desemprego caiu de forma vigorosa para 9,8% em Março, menos 3,4 pontos do que no final de 2015.

Quanto à devolução de rendimentos, os números são menos impressionantes: usando a recorrente solução do gradualismo temporal, o Governo de Costa, com o apoio do PCP e Bloco, cumpriu a retirada da sobretaxa, a reposição dos salários na Função Pública, o descongelamento da esmagadora maioria das pensões e o aumento significativo do salário mínimo.


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