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Brasil: Os jovens “entenderam a democracia como um exercício diário”
“Amigos portugueses não param de me escrever, perguntando o que está acontecendo. Falo que cansámos de tanta roubalheira, tanta corrupção, tantos impostos, tantos serviços públicos de péssima qualidade. Cansámos da inflação, da falta de vergonha, do pibinho, da péssima administração, da farsa da Copa à custa de gente morrendo pelo chão nos hospitais. Cansámos de tudo. E saímos para as ruas.” Uma “amiga brasileira” explica desta forma o que se tem passado no Brasil. Milhares de pessoas nas ruas. Por um “Brasil melhor, mais feliz, mais cuidado”.
Em plena Copa das Confederações, o Brasil não fala de futebol. Não comenta os golos de Neymar. Não elogia os lances de David Luiz. Ou do avançado Hulk. Não comenta a estratégia de Felipão. Os brasileiros estão nas ruas. Não para comemorar as vitórias da sua equipa mas para dar voz à insatisfação das pessoas. Joseph Blatter não tinha razão quando afirmou que o “futebol é mais importante que insatisfação das pessoas”. Não para este novo Brasil.
Para Aneide Santana, residente em Olinda, cidade irmã de Recife, no nordeste do Brasil, os jovens brasileiros “surpreenderam colocando nas ruas reivindicações legítimas de forma suprapartidária”. “Esse é o nó. Para que servem os partidos?”, questiona esta historiadora brasileira, que falou com o Negócios através do Facebook.
“Houve um tempo, que já passou, em que se vivia a zona de conforto das respostas quase prontas. O novo formato social exige agora um maior empenho. Mais colaboração. Os partidos políticos, por exemplo, nos seus formatos de décadas já não abrigam todas as respostas e soluções. A tradução da realidade é agora mais plural. E haja ciência para interpretar”, escreve Aneide na sua página no Facebook.
O movimento que iniciou os protestos – Movimento Passe Livre – apresenta-se, precisamente, como não sendo filiado em nenhum partido ou instituição. “O MPL é um movimento social independente e horizontal, o que significa que não temos presidentes, dirigentes, chefes ou secretários, todos têm a mesma voz e poder de decisão dentro dos nossos espaços”, pode ler-se no site do movimento.
Na verdade, explica Domitila Guarani Kaiowá ao Negócios, “o mais bonito é a rejeição a que partidos políticos coloquem suas bandeiras nas passeatas”. “O movimento é social. Não é partidário.”
E como reage o poder político a estes protestos? “Com muito medo”, responde Domitila. Esse medo levou já muitos Estados, incluindo São Paulo (onde tiveram início os protestos) e Rio de Janeiro, a baixarem o preço dos transportes públicos. Em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad sofreu mesmo a “sua primeira grande derrota política” ao baixar as tarifas menos de seis horas após ter afirmado que revogar este aumento (decretado no início de Junho) seria uma "decisão de carácter populista".
"A coisa mais fácil do mundo é agradar no curto prazo, tomar uma decisão de carácter populista sem explicar para a sociedade as implicações", disse Haddad às 11h30 do dia 19 de Junho. Às 18h00 do mesmo dia, ao lado do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, “decreta o fim do aumento visivelmente contrariado” e “muda o discurso”: "É um gesto de aproximação, de manutenção do espírito de democracia, de convívio pacífico", disse, citado pelo site da Folha de São Paulo.
Constança Lucas, artista plástica portuguesa radicada em São Paulo há muitos anos, diz que desta vez teve de haver mais diálogo. “Aqui em São Paulo, a cidade tem um prefeito do PT [Partido dos Trabalhadores], e o governo do Estado é do PSDB. Vivem em disputa de poder, mas desta vez tiveram que conversar. O metro é da responsabilidade do Estado e os ônibus e trens são da responsabilidade da prefeitura”.
Os filhos rebeldes do Brasil
Terá sido também o medo que levou Dilma a procurar Lula para falarem sobre o “filho rebelde”. “Lula e Dilma eram como aqueles pais que se sentem orgulhosos de ver seus filhos saírem da penúria, colocarem a gravata para ingressar na universidade; levarem no bolso o celular e as chaves da moto, e até do carro”, escreve Juan Arias, escritor espanhol e correspondente, no Brasil, do diário espanhol “El País”.
Mas os “filhos cresceram, conheceram mais coisas da vida e da política do que os pais. E começaram a fazer perguntas aos pais. E ousaram até fazer perguntas escabrosas. E, o que foi ainda pior, até discordar deles”. “Lula chegou a elogiar o sistema de saúde do Brasil, numa frase que hoje ele preferiria esquecer. Disse que tinha chegado "quase à perfeição", e acrescentou que ‘no Brasil até dava vontade de ficar doente para desfrutar de um hospital’. Os filhos um dia foram a esses hospitais e viram que era melhor estarem saudáveis".
"Não sei se vamos saber o que a Dilma e o Lula decidiram fazer ou dizer ao filho que se rebelou e prefere morar na pós-política. Ao filho que para protestar e actuar na sociedade não precisa mais aderir ao sindicato ou ao partido político do pai, ou ir de mãos dadas com ele para se manifestar pelas ruas em contra do patrão. Ele sabe ir só e livremente. 'Não precisamos pertencer a nenhum partido para estar indignados e protestar', podia-se ler no Facebook", escreve Arias.
Mas serão estes jovens – que nos últimos dias encheram as ruas de várias cidades brasileiras – capazes de mudar alguma coisa? O que se segue? Aneide Santana chama a atenção que ainda é muito cedo para dizer o que vai mudar mas uma coisa é certa, estes jovens “entenderam a democracia como exercício diário”.
“Amigos portugueses não param de me escrever, perguntando o que está acontecendo. Falo que cansámos de tanta roubalheira, tanta corrupção, tantos impostos, tantos serviços públicos de péssima qualidade. Cansámos da inflação, da falta de vergonha, do Pibinho, da péssima administração, da farsa da Copa à custa de gente morrendo pelo chão nos hospitais. Cansámos de tudo. E saímos para as ruas”, diz uma amiga brasileira do jornalista português Márcio Candoso, na sua página no Facebook.
Miriam Peter, brasileira “gaúcha” a viver em Portugal há mais de 20 anos, espera “que isto não fique só em páginas de jornais”. “Querem a Dilma fora... O Collor foi corrido pelo povo, vamos ver se a Dilma aguenta...”, diz ainda.
Já Constança Lucas “está a torcer” para que nas próximas eleições haja “mais opções de qualidade para votarmos”. “Ultimamente tá difícil escolher”, comenta.
E algo está mesmo a mudar. Já não é apenas o preço e a qualidade dos transportes públicos que está em causa. “Nas ruas, no trabalho, nas lojas, no metro, ouvem-se as pessoas comentarem sobre as manifestações sociais e as suas consequências. Era algo impensável até recentemente, a população não tem o hábito de falar de política. Em plena temporada de jogos de futebol, a Copa da Confederações, e nas ruas o tema é política e não futebol, isto é raro e certamente reflecte o cansaço de esperar melhorias mais profundas nas condições sociais, muitas promessas e poucas realizações”, diz Constança.
O que começou por ser uma reivindicação contra o aumento das tarifas dos transportes públicos, é agora um protesto contra a corrupção, a votação da PEC 37 (proposta de emenda constitucional que reduz poder de investigação do Ministério Público) e os gastos públicos excessivos com a Copa do Mundo, Copa das Confederações e Jogos Olímpicos.
Os manifestantes defendem também a prisão dos políticos envolvidos no escândalo do Mensalão, conhecidos pelos Mensaleiros.
“O mais interessante destes movimentos é que reivindicam melhorias sociais em geral. Começaram por causa do aumento dos transportes em 20 centavos, de 3 reais para 3,20 [o aumento foi do ônibus e do metrô (autocarro e metro)] e a pressão funcionou. Ontem os governantes voltaram atrás e retiraram o aumento dos transportes”, refere Constança, acrescentando que “as reivindicações são diversas. Uma das mais destacadas é a construção de estádios caros e sem infra-estruturas que beneficiem a população após os eventos desportivos”.
Já Domitila Guarani Kaiowá sublinha que o “movimento questiona o facto de terem existido investimentos astronómicos em estádios de futebol para a realização da Copa enquanto os serviços públicos que deveriam garantir o dia-a-dia da população tiveram um claro desinvestimento”. “Temos um quadro social grave de exclusão, de acesso ao mínimo básico para viver com dignidade. As pessoas do sertão, por exemplo, não têm água para beber. Não têm comida”, refere esta brasileira de 30 anos.
Apesar dos recuos que já houve em alguns Estados relativamente ao aumento das tarifas e do adiamento da votação da PEC37, para hoje estavam previstas manifestações em mais de 90 cidades do Brasil.
“Nós queremos um Brasil melhor, mais feliz, mais cuidado - existe no ar um espírito de solidariedade. São poucos os que se aproveitam das multidões para serem agressivos e provocarem violência”, remata Constança Lucas.