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Presidente do Supremo pede que se acabe com a “retórica sobre a crise da justiça”

A justiça portuguesa atravessa um bom momento e não se justifica manter o discurso da crise, defende António Piçarra. O magistrado admite, contudo, que continua a haver problemas “sérios e profundos”, alguns estruturais, como a falta de apoio aos juízes nos mega-processos.

Lusa
06 de Janeiro de 2020 às 16:19
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"A justiça portuguesa é uma instituição democrática, credível e reconhecida" e é hoje possível "exigir a todos os responsáveis políticos, e se possível também a alguns comentadores, que questionem a sua retórica sobre a crise na justiça", afirmou esta segunda-feira o juiz conselheiro António Piçarra, presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), defendendo que "é altura de pôr termo às críticas vazias, às ideias feitas e à deslegitimação, inconsciente ou consciente, do sistema de justiça".

 

O magistrado falava na abertura do ano judicial, que decorre esta tarde no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. Esta cerimónia decorre habitualmente no salão nobre do Supremo Tribunal de Justiça, no Terreiro do Paço, mas este local encontra-se em obras, tendo o presidente do STJ aproveitado para falar da preocupação que, disse, o "assalta e assaltará, enquanto não vir assegurados os meios necessários à completude atempada da intervenção em curso".

 

Foi o primeiro tom de crítica que se lhe ouviu às questões orçamentais. Mais à frente, no discurso, voltaria ao assunto para lembrar que há problemas estruturais que se poderiam resolver com o devido apoio orçamental. O tom, contudo, acabaria por ser quase sempre pela positiva.

 

"Obviamente que a justiça continua a ter problemas muito sérios e profundos", mas, "existe uma atual e verdadeira crise no sistema de justiça"? questionou o magistrado, lembrando que "a retórica da crise, ou crises, da justiça tem muitos anos. Muitas décadas".

 

"Obviamente que a justiça continua a ter problemas muito sérios e profundos. Dizer o contrário seria estar fora da realidade ou seguir uma espécie de negacionismo sem sentido algum. Problemas sérios sim. Mas serão suficientes para continuar a afirmar a existência de uma crise?" Olhando para os dados que temos no presente, "posso afirmar, com convicção, que o sistema de justiça português está equilibrado e funcional".

A própria "perceção que os cidadãos têm da justiça está alinhada com essa ideia de equilíbrio funcional", salientou desde logo, invocando um estudo recente apoiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e coordenado por Tiago Fernandes, professor de Ciência Política da Universidade Nova de Lisboa, com o título "Instituições e qualidade da democracia: cultura política na Europa do Sul". Segundo o estudo, "a confiança nas instituições da justiça tem aumentado sensivelmente, situando-se agora nos 41%, subindo 10 pontos percentuais face a avaliações de há quinze anos, sendo superior ao nível de confiança que depositam noutras instituições democráticas".

 

Menos pendências, o eterno problema da justiça económica

Depois, o presidente do STJ recorreu também às estatísticas da Justiça sobre a atividade processual nos tribunais judiciais para fundamentar a sua posição e afirmar que "o processo de estabilização do sistema se manteve durante o ano 2019, com as pendências a reduzirem-se. "Terminámos o ano com cerca de 310.000 processos pendentes de decisão judicial, quando, em dezembro de 2018, encontravam-se, nesse estado, cerca de 345.000 processos, o que corresponde a uma melhoria significativa", muito embora continue "a ser elevado o número de processos pendentes após decisão". Nos tribunais superiores, as notícias são igualmente positivas, bem como ao nível do Conselho Superior de Magistratura, afirmou ainda o magistrado.

 

"Globalmente, temos um sistema judicial operativo e funcional", concluiu António Piçarra, lamentando, no entanto, os entraves que continuam a fazer-se sentir ao nível da justiça económica, aí se incluindo as cobranças de dívidas e os tribunais do comércio. Ainda que também aí as estatísticas apontem para melhorias, "muito há ainda a fazer para dotar o sistema de racionalidade e previsibilidade generalizadas".

 

A outra área problemática, segundo o presidente do STJ, é a dos "processos especialmente complexos, normalmente de natureza criminal, mas que podem ser de qualquer área jurisdicional", que constitui "a equação mais difícil de resolver para o sistema de justiça" e que "afetou a imagem de toda a justiça no ano 2019. Afetará no ano 2020 e, presumivelmente, continuará a afetar nos próximos anos".

 

"O sistema de justiça português tem um problema estrutural na capacidade de responder a esta realidade", lamentou o magistrado. Porque são processos que muitas vezes incluem múltiplos ilícitos, em múltiplas jurisdições e que a resposta do sistema de justiça acaba por ser a de tudo investigar e por tudo acusar, devendo depois a prova ser feita em julgamento. Isso conduz a processos com "centenas de testemunhas" e "milhares, ou dezenas de milhares de documentos" para analisar, pelo que um juiz "terá sempre que levar muito tempo. É inexorável".

"Neste quadro legal e organizativo será cada vez mais normal que os processos judiciais complexos levem anos em investigação e muitos anos em julgamentos e recursos. Isto não significa, porém, laxismo. Decorre da lógica e da organização do sistema", avisou. Porque, "cada processo especialmente complexo é, no nosso sistema atual, uma gigantesca construção erigida pedra a pedra".

 

Resposta é política

"Alterar esta equação é muito difícil, mas assenta, sobretudo, em opções políticas", avisou o presidente do STJ . Embora reconhecendo que "as alterações no quadro legal são extremamente sensíveis", António Piçarra defendeu que "a alteração do apoio aos juízes é algo que só depende de vontade política e não tem qualquer reserva de princípio".

Os gabinetes de apoio aos magistrados estão previstos na lei, mas até agora não foi inscrita a verba necessária no orçamento do Conselho Superior de Magistratura, o que "não atesta que tenha existido, até ao momento, grande sensibilidade para esta matéria", sustenta.

 

O magistrado salientou ainda que "Portugal continua a manter níveis de independência dos juízes verdadeiramente referenciais no contexto internacional. O respeito do poder político pela independência da justiça mantém-se intocado". E pediu especial atenção do poder político ao que vai acontecendo a nível europeu, nomeadamente com o Brexit e as consequências que o afastamento do Reino Unido poderá trazer também ao nível da justiça no continente europeu.

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