Notícia
A rebelião contra os TPC chegou a Espanha. A seguir, será Portugal?
Os estudantes portugueses são dos que dedicam, em média, menos tempo aos TPC, mas os "deveres de casa" são motivo de queixa crescente e recorrente de muitas famílias.
Em vez de os mandar para o quarto, proponha-lhes uma tarefa em família: cozinhar uma refeição, visitar um museu ou escrever um postal aos avós. A cada segunda-feira, explique pessoalmente ou envie uma carta ao professor por que ficaram por fazer. Diga-lhe que é especialmente ao fim-de-semana que tem tempo para estar com os seus filhos. Se não lhe derem ouvidos, no limite argumente que as famílias tomarem decisões que considerem ser as mais adequadas para o agregado é um direito constitucional que a escola não pode violar. O "manual de instruções" é da autoria da Confederação Espanhola de Associações de Pais de Alunos (Ceapa) que acaba de desafiar as famílias espanholas a fazer greve aos trabalhos de casa durante os fins-de-semana de Novembro.
A "rebelião" tem precedente em França. Em 2012, também os pais gauleses se insurgiram contra as escolas que teimavam violar a norma nacional que proíbe o envio de deveres aos mais jovens. No caso de Espanha, o contexto é, porém, distinto. A greve, decretada por uma confederação que representa cerca de 12 mil associações de pais em toda a Espanha, surge depois de os governos das comunidades autonómicas não terem dado resposta ao ultimato da Ceapa para que, pelo menos, obrigassem as escolas a "racionalizar" os TPC, forçando os professores a coordenarem-se em torno das tarefas que querem ver cumpridas fora da escola. Na ausência de resposta das autoridades, a greve, acenada ainda em Setembro, arrancou neste fim-de-semana.
Quando a escola é demasiado omnipresente
Para já, o boicote é temporário, mas o objectivo da confederação é mesmo acabar com eles de vez, porque – argumenta – os trabalhos de casa "invadem o tempo das famílias" e "violam o direito ao recreio, à brincadeira e a participar nas actividades artísticas e culturais", descrito no artigo 31 da Convenção dos Direitos da Criança. "A percepção generalizada é que a escola envia trabalhos de casa e cada mais cedo, inclusive a meninos do pré-escolar", denuncia José Luis Pazos, presidente de confederação. A este respeito, defende, deve aplicar-se uma regra bem simples: "O trabalho escolar tem de ficar feito na escola".
Mas há mais queixas. "Na escola falta uma disciplina: o meu tempo livre", acrescenta, referindo-se ao lema do site que a confederação criou para chamar simultaneamente a atenção da sociedade espanhola para a redução do tempo de recreio no horário escolar da generalidade das escolas públicas. Em declarações ao El Mundo, Pazos sublinha, porém, que acabar com os TPC e reclamar mais tempo livre para as crianças deve ser encarado como o primeiro passo de uma mudança mais profunda que considere ser urgente no sistema de ensino. "Queremos que o modelo mude e que se dê um salto qualitativo. Escolas de outros países funcionam sem trabalhos de casa, sem livros de texto e sem exames e obtêm resultados magníficos", exemplifica.
Nem todos os pais concordam com o fim, puro e duro, dos TPC, e menos ainda com a greve. "Não somos a favor de levar a insubordinação à escola ", argumenta Peter Knight. Em declarações ao El Mundo, o presidente da Concapa, confederação nacional de pais católicos, diz que é preciso discutir a carga horária exigida na escola e fora dela, mas adoptar uma atitude de rebelião contra o professor "não ajuda à educação" dos alunos.
Ao longo da última década, a generalidade dos países desenvolvidos reduziu a carga horária exigida pelos TPC. Ainda assim, Espanha é dos países onde "cumprir os deveres" exige mais horas, mais de seis por semana. Já a Finlândia, cujos resultados de aprendizagem lideram frequentemente os ranking mundiais, é o país onde os TPC consomem menos tempo, segundo o mais recente levantamento da OCDE (ver tabela).
"Há muito poucas evidências de que os trabalhos de casa melhorem os resultados, especialmente nos primeiros anos de escolarização. Os mais pequenos são muitas vezes incapazes de os fazer sozinhos e, no final, acabam é por aprender a depender dos pais em vez de aprender a automotivação, a disciplina e a responsabilidade, como alegam os partidários dos TPC", afirma Sara Bennett, mãe norte-americana, co-autora do "The case against homework".
Seis horas por semana, recomenda a OCDE ... para os jovens
Vários estudos científicos sustentam, porém, os méritos dos TPC, embora os mais abrangentes estejam direccionados para os jovens do ensino secundário, não para as crianças. Os da OCDE, por exemplo, sugerem que os alunos de 15 anos que dedicam seis horas por semana a fazer trabalhos de casa reduzem em 70% as hipóteses de obterem fracos resultados escolares.
A OCDE chama também a atenção para o risco de a transferência de trabalho da escola para casa perpetuar ou até agravar as desigualdades, mas esse não é um risco que leve a organização a recomendar o fim dos TPC. Ao invés, a organização sedeada em Paris aconselha as sociedades, designadamente escolas e professores, a criarem condições para que os alunos mais desfavorecidos possam ter oportunidade de realizar os trabalhos de casa em condições mais favoráveis - nas bibliotecas ou em espaço escolar com o acompanhamento de professores, por exemplo.
O estudo "E os alunos, que responsabilidade", do projecto aQeduto, conclui, por seu turno, que os alunos com melhores resultados na prova de Matemática dos testes PISA em 2012 são aqueles que mais tempo passam a fazer trabalhos de casa. "Contudo, a nível agregado, não se observa uma relação entre maior número médio de horas dedicadas à realização de trabalhos de casa e score [resultado] médio dos países. Por exemplo, os alunos finlandeses dedicam pouco tempo a trabalhos de casa (3 horas) e o 'score' PISA é elevado (519), ao passo que, em Espanha, o número de horas (6) é muito mais elevado e o 'score' é relativamente baixo (484)", exemplifica-se.
Em Portugal, os estudantes são dos que dedicam, em média, menos tempo aos TPC: cerca de quatro horas por semana, segundo dados de 2012. Dez anos antes, em 2003, consumiam mais uma hora. Não obstante, são motivo de queixa crescente e recorrente de muitas famílias que lamentam que roubem tempo, já escasso, da família, e se transformem muitas vezes em focos de conflito em casa, havendo também quem lhes queira por um ponto final por os considerar reflexo de uma preocupação excessiva pelas notas, no lugar de uma avaliação mais qualitativa da aprendizagem.
"É um problema sobre o qual se deve reflectir muito a fundo porque a carga de TPC é muito exagerada. Os currículos são muito extensos e, muitas vezes, os TPC servem para os alunos aprenderem em casa parte da matéria que deveria ser dada em aula", diz Paulo Cardoso, do conselho executivo da Cofap.
Falando nesta semana num fórum que a TSF organizou sobre o tema, Cardoso deixou, porém, claro que não vê como provável uma greve em Portugal semelhante à convocada no país vizinho, até porque a maior confederação portuguesa de associações de pais "não é contra os trabalhos de casa". "Eles têm é de ser repensados, organizados entre professores e incidir sobre matéria dada, e os professores têm de os corrigir para avaliar a aprendizagem", precisou, defendendo que deveria ser o Ministério da Educação a instruir as escolas nesse sentido, em vez de lhes dar total liberdade – para prescrever, ou não, TPC.
O exemplo singular de Carcavelos
Quem optou pela prescrição zero foi Adelino Calado, director do agrupamento de escolas de Carcavelos, que criou uma "zona livre de TPC". "Começamos há sete anos a fazer turmas com e sem TPC e observámos que não havia diferença nos resultados escolares, sendo que os TPC eram muitas vezes entendidos como um castigo", explicou aos microfones da TSF.
Há dois anos passou a ser obrigatório não mandar trabalhos de casa. Não foi fácil romper com uma tradição tão enraizada na cultura do ensino e houve resistência por parte de professores mas também de pais que temiam que os seus filhos ficassem para trás. Mas Adelino Calado garante que os resultados confirmam que foi feita a aposta certa. "Em termos de sucesso escolar, o agrupamento tem vindo a melhorar, e ele ronda hoje os 96%", afirmou, precisando o fim dos TPC não explica tudo. Até porque eles acabaram, mas na sua forma clássica. "O trabalho em casa é necessário, mas o que tentamos fazer é que o aprendido na escola seja aplicado pelos alunos em casa, para que percebam que o que se aprende na escola é útil", sublinha o professor de Carcavelos. Afinal, matemática é também contar enquanto se descascam batatas, assim como reparti-las em igual número pelos pratos à mesa de jantar.
A "rebelião" tem precedente em França. Em 2012, também os pais gauleses se insurgiram contra as escolas que teimavam violar a norma nacional que proíbe o envio de deveres aos mais jovens. No caso de Espanha, o contexto é, porém, distinto. A greve, decretada por uma confederação que representa cerca de 12 mil associações de pais em toda a Espanha, surge depois de os governos das comunidades autonómicas não terem dado resposta ao ultimato da Ceapa para que, pelo menos, obrigassem as escolas a "racionalizar" os TPC, forçando os professores a coordenarem-se em torno das tarefas que querem ver cumpridas fora da escola. Na ausência de resposta das autoridades, a greve, acenada ainda em Setembro, arrancou neste fim-de-semana.
Quando a escola é demasiado omnipresente
Para já, o boicote é temporário, mas o objectivo da confederação é mesmo acabar com eles de vez, porque – argumenta – os trabalhos de casa "invadem o tempo das famílias" e "violam o direito ao recreio, à brincadeira e a participar nas actividades artísticas e culturais", descrito no artigo 31 da Convenção dos Direitos da Criança. "A percepção generalizada é que a escola envia trabalhos de casa e cada mais cedo, inclusive a meninos do pré-escolar", denuncia José Luis Pazos, presidente de confederação. A este respeito, defende, deve aplicar-se uma regra bem simples: "O trabalho escolar tem de ficar feito na escola".
Nem todos os pais concordam com o fim, puro e duro, dos TPC, e menos ainda com a greve. "Não somos a favor de levar a insubordinação à escola ", argumenta Peter Knight. Em declarações ao El Mundo, o presidente da Concapa, confederação nacional de pais católicos, diz que é preciso discutir a carga horária exigida na escola e fora dela, mas adoptar uma atitude de rebelião contra o professor "não ajuda à educação" dos alunos.
Ao longo da última década, a generalidade dos países desenvolvidos reduziu a carga horária exigida pelos TPC. Ainda assim, Espanha é dos países onde "cumprir os deveres" exige mais horas, mais de seis por semana. Já a Finlândia, cujos resultados de aprendizagem lideram frequentemente os ranking mundiais, é o país onde os TPC consomem menos tempo, segundo o mais recente levantamento da OCDE (ver tabela).
"Há muito poucas evidências de que os trabalhos de casa melhorem os resultados, especialmente nos primeiros anos de escolarização. Os mais pequenos são muitas vezes incapazes de os fazer sozinhos e, no final, acabam é por aprender a depender dos pais em vez de aprender a automotivação, a disciplina e a responsabilidade, como alegam os partidários dos TPC", afirma Sara Bennett, mãe norte-americana, co-autora do "The case against homework".
Seis horas por semana, recomenda a OCDE ... para os jovens
Vários estudos científicos sustentam, porém, os méritos dos TPC, embora os mais abrangentes estejam direccionados para os jovens do ensino secundário, não para as crianças. Os da OCDE, por exemplo, sugerem que os alunos de 15 anos que dedicam seis horas por semana a fazer trabalhos de casa reduzem em 70% as hipóteses de obterem fracos resultados escolares.
A OCDE chama também a atenção para o risco de a transferência de trabalho da escola para casa perpetuar ou até agravar as desigualdades, mas esse não é um risco que leve a organização a recomendar o fim dos TPC. Ao invés, a organização sedeada em Paris aconselha as sociedades, designadamente escolas e professores, a criarem condições para que os alunos mais desfavorecidos possam ter oportunidade de realizar os trabalhos de casa em condições mais favoráveis - nas bibliotecas ou em espaço escolar com o acompanhamento de professores, por exemplo.
O estudo "E os alunos, que responsabilidade", do projecto aQeduto, conclui, por seu turno, que os alunos com melhores resultados na prova de Matemática dos testes PISA em 2012 são aqueles que mais tempo passam a fazer trabalhos de casa. "Contudo, a nível agregado, não se observa uma relação entre maior número médio de horas dedicadas à realização de trabalhos de casa e score [resultado] médio dos países. Por exemplo, os alunos finlandeses dedicam pouco tempo a trabalhos de casa (3 horas) e o 'score' PISA é elevado (519), ao passo que, em Espanha, o número de horas (6) é muito mais elevado e o 'score' é relativamente baixo (484)", exemplifica-se.
Em Portugal, os estudantes são dos que dedicam, em média, menos tempo aos TPC: cerca de quatro horas por semana, segundo dados de 2012. Dez anos antes, em 2003, consumiam mais uma hora. Não obstante, são motivo de queixa crescente e recorrente de muitas famílias que lamentam que roubem tempo, já escasso, da família, e se transformem muitas vezes em focos de conflito em casa, havendo também quem lhes queira por um ponto final por os considerar reflexo de uma preocupação excessiva pelas notas, no lugar de uma avaliação mais qualitativa da aprendizagem.
"É um problema sobre o qual se deve reflectir muito a fundo porque a carga de TPC é muito exagerada. Os currículos são muito extensos e, muitas vezes, os TPC servem para os alunos aprenderem em casa parte da matéria que deveria ser dada em aula", diz Paulo Cardoso, do conselho executivo da Cofap.
Falando nesta semana num fórum que a TSF organizou sobre o tema, Cardoso deixou, porém, claro que não vê como provável uma greve em Portugal semelhante à convocada no país vizinho, até porque a maior confederação portuguesa de associações de pais "não é contra os trabalhos de casa". "Eles têm é de ser repensados, organizados entre professores e incidir sobre matéria dada, e os professores têm de os corrigir para avaliar a aprendizagem", precisou, defendendo que deveria ser o Ministério da Educação a instruir as escolas nesse sentido, em vez de lhes dar total liberdade – para prescrever, ou não, TPC.
O exemplo singular de Carcavelos
Quem optou pela prescrição zero foi Adelino Calado, director do agrupamento de escolas de Carcavelos, que criou uma "zona livre de TPC". "Começamos há sete anos a fazer turmas com e sem TPC e observámos que não havia diferença nos resultados escolares, sendo que os TPC eram muitas vezes entendidos como um castigo", explicou aos microfones da TSF.
Há dois anos passou a ser obrigatório não mandar trabalhos de casa. Não foi fácil romper com uma tradição tão enraizada na cultura do ensino e houve resistência por parte de professores mas também de pais que temiam que os seus filhos ficassem para trás. Mas Adelino Calado garante que os resultados confirmam que foi feita a aposta certa. "Em termos de sucesso escolar, o agrupamento tem vindo a melhorar, e ele ronda hoje os 96%", afirmou, precisando o fim dos TPC não explica tudo. Até porque eles acabaram, mas na sua forma clássica. "O trabalho em casa é necessário, mas o que tentamos fazer é que o aprendido na escola seja aplicado pelos alunos em casa, para que percebam que o que se aprende na escola é útil", sublinha o professor de Carcavelos. Afinal, matemática é também contar enquanto se descascam batatas, assim como reparti-las em igual número pelos pratos à mesa de jantar.