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Entrevista - John Snow (ex-secretário do tesouro norte-americano)
John Snow esteve na semana passada em Portugal e o Jornal de Negócios aproveitou para entrevistar o ex-secretário do Tesouro de George W. Bush. Uma conversa sobre o passado, o presente e o futuro dos EUA e as suas relações com o resto do Mundo
Esteve no Governo num tempo em que os EUA foram muito pressionados para lidar com os défices gémeos. Ainda são, aliás. No entanto, não mostrou empenho em corrigi-los. Porquê?
Bem, fizemos muito sobre o défice orçamental. Quanto cheguei estava nos 4,6% e a crescer. No último ano, ficou nos 1,9% do PIB e não me surpreenderia se o Presidente Bush acabasse o mandato com um superavit. E eu dir-lhe-ia para o tentar fazer.
Mas esse resultado é conseguido fundamentalmente através de receita, e não por maior controlo na despesa...
É verdade. Mas nos EUA o défice é menor que em muitos dos países da Zona Euro... estaríamos elegíveis para Maastrich. Gostava que tivéssemos feito mais no lado da despesa. Ainda assim, nos últimos anos os gastos discricionários cresceram menos que a inflação. Entretanto tivemos a guerra e o Katrina: sem eles estaríamos em equilíbrio.
Foi muito criticado por defender um dólar forte e não ter feito nada para que isso acontecesse. Porquê?
O dólar precisa de reflectir as realidades e económicas. Quando disse que queríamos um dólar forte foi sempre para afirmar essa ideia e garantir que nunca procuraríamos crescimento através de desvalorizações. Sempre disse que essa era a nossa política, mas também sempre disse que o valor das moedas deve ser definido em mercados abertos e não controlados.
Mas ao não atacar os défices externo e orçamental contribuiu para desvalorizar o dólar...
Estou orgulhoso do que fizemos: colocámos em prática um quadro político com o suporte do G7 e do FMI para atacar o problema. Este quadro começa com o reconhecimento de que o défice da balança corrente é uma responsabilidade partilhada, não apenas dos Estados Unidos: reflecte taxas de crescimento diferentes, taxas de poupança e de investimento diferentes e diferentes políticas monetárias.
Eu sempre reconheci que tínhamos de fazer mais, especialmente pelo lado da poupança das famílias. Mas, mesmo que melhorássemos na poupança, isso não resolveria o problema. Parte da explicação para o défice da balança corrente é que os EUA estiveram a crescer mais do que o resto do Mundo e que a Europa.
Esse crescimento só é possível através de dinheiro que estão a pedir emprestado à Ásia e aos países produtores de petróleo. Isso não é perigoso?
Os países que têm grandes excedentes devem ver isso reflectido com inflação elevada, se tiverem taxas de câmbio fixas, ou em moeda mais cara do que se tiverem câmbios flexíveis. O sistema é global.
A China já reconheceu que precisa de mais flexibilidade. Não é suficiente, mas é uma evolução na direcção correcta. Isto resultaria numa apreciação da renmimbi.
Os EUA estão também a ficar com menos trabalhadores dado o envelhecimento, a produtividade está a abrandar, o mercado de habitação a arrefecer. Acha que poderá ocorrer uma "aterragem brusca"?
Essa é uma hipótese remota. A economia está em pleno emprego: uma taxa de desemprego de 4,4% não é sustentável e deverá nos próximos tempos avançar para algo próximo dos 5%, o que ajudará a arrefecer as expectativas inflacionistas evitando uma intervenção da Fed.
O arrefecimento do mercado imobiliário poderá ter efeitos sobre a disponibilidade dos consumidores continuarem a alimentar a economia?
Fala-se muito disso, de um arrefecimento brusco e dos efeitos sobre os consumidores. Mas parece-me pouco provável. Creio tratar-se de má compreensão da economia norte-americana: esta não é uma economia de um só factor, há muitos cilindros a trabalhar. À medida que o mercado de habitação está a arrefecer, estão ser criados mais empregos, os salários estão a aumentar.
O que pensa do risco dos países asiáticos e dos produtores de petróleo deixarem de comprar obrigações norte-americanas e dólares ao ritmo actual provocando uma subida nos vossos juros?
A entrada de dinheiro nos EUA é um voto de confiança na economia norte-americana. Reflecte a profundidade dos nossos mercados de capitais e diz que a economia norte-americana paga um retorno adequado pelo risco que os investidores assumem. Os investidores não aplicam o dinheiro nos EUA como um favor que fazem: dada a grande actual liquidez no mundo, não há outro mercado que possa oferecer as mesmas condições.
Como é que vê o euro?
Acho que está a correr muito bem. É um grande sucesso e excedeu as minhas expectativas iniciais.
Vê diferenças entre o BCE e a Fed?
Não. As questões base são as mesmas e têm o mesmo objectivo.
Muitos bancos centrais vêem-se obrigados a comprar a vossa moeda para que ela não desvalorize. Por isso, muitos têm-se lembrado de um antecessor seu que nos anos 70 afirmou: "A moeda é nossa, o problema é vosso." Alguns afirmam mesmo que esta é uma manifestação de imperialismo. O que pensa desta perspectiva?
Eu não olharia para as coisas dessas maneira. Há pessoas que o vêem exactamente do outro lado, ou seja, que esta situação coloca a América refém dos países que têm muitas reservas em dólares e outros títulos. Parece-me que não há uma grande ameaça, nem de uma perspectiva nem de outra. É apenas um reflexo da forma com o mundo funciona. É surpreendente pensar que hoje muitas economias em desenvolvimento, com níveis de rendimento muito baixos, são credores dos EUA. Isto não pode continuar para sempre, e nós sabemos disso.
Como se resolvem estes desequilíbrios?
Não se faz depressa. Nós temos de fazer a nossa parte, mas é uma responsabilidade amplamente partilhada. No entanto, penso que o principal risco para a economia mundial neste momento é uma guerra de comércio. Precisamos de estar muito alertas para sinais de proteccionismo. É errado a todos os níveis: não permite a utilização eficiente de recursos a nível global e exclui do comércio internacional países muito pobres, por exemplo em África. Integrá-los seria melhor que qualquer ajuda.
O que é não está a funcionar? Têm os agricultores e os produtores assim tanta influência?
Têm. E penso que é tempo dos líderes mundiais se levantarem acima dos interesses paroquiais. Nos EUA, e especialmente neste capítulo, o presidente Bush mostrou verdadeira liderança. Num momento crítico há um ano, o Presidente disse que estaria preparado para abrir os seus mercados agrícolas. Eu apresentei essa proposta aos líderes europeus e mundiais, desde que eles fizessem o mesmo. Chirac não deixou. Acho que precisamos de uma nova geração de líderes.
A ronda de Doha pode ressuscitar?
É difícil. Eu sempre fui optimista. Lamy, presidente da OMC, é um homem criativo e forte. Talvez consiga, mas não sem apoio. E, enquanto não se conseguir quebrar a resistência na agricultura, não se vai conseguir o resto.