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O Dão de outros tempos

Para os saudosistas do Dão (gente de bom gosto), a Casa da Passarella exige visita urgente. Brancos e tintos nobres renascem porque a empresa aproveita o pensamento e o trabalho dos antigos. Aqui, o terroir não é um cliché.

25 de Novembro de 2017 às 13:00
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Cada colecção Passarella conta uma história. Fugitivo é a homenagem ao enólogo francês Hellis, que se refugiou no Dão durante a II Guerra Mundial. O tinto Vinhas Centenárias resulta de parcelas de vinhas muito velhas de agricultores próximos da Casa da Passarella. Se tivesse de usar só uma palavra para o descrever, seria pureza. É um grande Dão e só isso interessa, mas havendo necessidade de convencer um snob português (há muitos) diria que este Fugitivo de 2013 poderia ser originário da Borgonha. Pronto, está dito. Custa €23.


Há cerca de um mês, participei numa prova em Lisboa com vinhos da Casa da Passarela, no restaurante Café Garrett, e regressei a pé para casa, por necessidade de reflectir sobre vinhos que, misteriosamente, permaneciam na minha memória sensorial.

Costumo sair da maioria das provas com a sensação de estar a ver um filme do dia anterior ou da semana passada. Há excepções, mas a verdade é que, de norte a sul, andamos neste pingue-pongue da fruta doce contra a barrica, da estrutura contra o álcool ou do tanino redondo contra a acidez. Embora reconheça o esforço de alguns produtores na criação de vinhos mais frescos e equilibrados, o mercado uniformiza-se de forma assustadora. Se termino uma prova e fico a mendigar cerveja ou água com gás, há qualquer coisa que não bate certo.

Agora não consigo recordar-me da última prova em que fiquei com a sensação de estar perante tanto vinho desafiante como neste caso da Passarella. Podia ter sido um em cinco vinhos. Mas não. Foram cinco em sete. Cinco vinhos que sempre que rodavam no copo me faziam recuar aos tempos em que o Dão nos oferecia brancos e tintos esplendorosos. Inimitáveis.

Neste conjunto, estão os brancos Villa Oliveira 1ª Edição (2010/2015) e Fugitivo Branco de Curtimenta 2016 e os tintos Oenólogo Vinhas Velhas 2014, Fugitivo Vinhas Centenárias 2014 e Villa Oliveira 125 anos, de 2014.

Perante isto, uma decisão impunha-se: visitar a Casa da Passarella porque as explicações do criador dos vinhos não chegavam. Pelo que, esta semana, e durante uns passeios com Paulo Nunes por várias parcelas da Passarella, muitas coisas ficaram claras. O segredo dos vinhos está nestes quatro factores: o terroir e as vinhas velhíssimas; o respeito pelo saber dos antigos; o trabalho mínimo na adega e a vontade de respeitar e arriscar no perfil do vinho do Dão de outros tempos.

Não sendo um enólogo badalado, Paulo Nunes é respeitado entre os pares pelo facto de, em cada projecto, interpretar a história vitícola dos territórios. Investe tempo na conversa com gente de idade, sejam eles técnicos ou agricultores com a quarta classe. Por exemplo, não foi um técnico de geologia que lhe ensinou que, em solos graníticos azulados, não se deve plantar vinha porque a dureza desta pedra dificulta o enraizamento da planta. Bom, bom são os granitos castanhos, logo, macios. Quem lhe explicou isto foi um agricultor cuja escola é a plantação de vinha ao longo de décadas.

Alguns dos vinhos da Passarela são feitos a partir de vinhas mais velhas do que a salve rainha, que só por um triz não foram arrancadas, em virtude da sua fraca produção. Hoje, sem essas parcelas, a Casa da Passarella seria mais um produtor do Dão com belos vinhos docinhos, cheios de fruta das tourigas e tintas rorizes desta vida.

Reparem nisto, os dois hectares de vinha que dão origem ao Oenólogo Vinhas Velhas são um granel com 24 castas, tintas e brancas, mas todas identificadas. Sem este conjunto, o vinho em causa não revelaria riqueza e mistério sempre que se roda o copo.

Um hectare de vinha velha dará umas três mil garrafas quando, reconvertido, chegaria às oito mil. Um gestor financeiro não hesitaria na escolha, mas Paulo Nunes não só teve a capacidade de fazer ver que o preço por garrafa compensaria o prejuízo das quantidades baixas como, logo na primeira colheita, uma senhora chamada Jancis Robinson colocou o Oenólogo Vinhas Velhas de 2008 (na altura com outro nome) na sua lista dos 10 grandes vinhos portugueses. E é por isso que Ricardo Cabral, proprietário da Casa da Passarella, aceitou a ideia de se replicar uma nova vinha com a mesma filosofia e o mesmo material vegetativo da vinha velha.

Se é um lugar comum dizer que os vinhos nascem na vinha, no caso da Passarela isto é um caso extremo. Na visita que fiz, passei o tempo todo nas vinhas. Deve ter sido a primeira vez que um enólogo nem se lembrou de guiar o jornalista pela adega para falar de cubas, lagares, bombas, computadores e barricas.

Daqui para a frente, quando beber um copo de vinho Passarella, quando cheirar notas de fruta discreta, alguma caruma e muito pouca madeira, quando sentir na boca notas minerais e vegetais com boa acidez e quando sentir o veludo do Dão de outros tempos, o meu espírito focar-se-á nas vinhas, nos solos, num ou noutro ditado de agricultores antigos, e não em fermentações prolongadas, oxigenações, barricas e demais tralha tecnológica.

Os meus agradecimentos a quem faz vinho desta maneira.


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