Notícia
Adeus Bastardinho
Esta é uma crónica marcada pela tristeza. Com este Bastardinho 40 anos, termina a vida de um dos mais emblemáticos vinhos doces da Península de Setúbal. E tudo por causa da pressão urbanística entre a Costa da Caparica, a Charneca e o Lavradio.
01 de Julho de 2017 às 13:00
Antigamente, um vinho velho era coisa muito apreciada. Com a modernização vitícola que começou nos anos 80, só os vinhos das colheitas mais recentes interessavam. E, se é certo que esse comportamento se verificava com maior intensidade no domínio dos brancos e dos tintos, também os vinhos generosos acabaram por ser afectados.
Em 2010, o lançamento do vinho do Porto Taylor’s Scion (145 anos) abanou a mentalidade dos produtores e de um nicho de consumidores endinheirados, de tal forma que, hoje, não há empresa de vinho do Porto que não queira descobrir nas suas caves (ou em caves recônditas no Douro) um Porto bem velhinho que possa ser vendido acima dos €3000 a garrafa.
E mesmo no que diz respeito a tintos e brancos, as coisas também mudaram a olhos vistos. Contra as previsões conservadoras dos próprios produtores, podemos hoje registar – com felicidade – o trabalho de várias garrafeiras que apostam em vinhos brancos com alguns anos de garrafa. E com clientes cada vez mais interessados no assunto.
É claro que, quando pensamos em vinhos Madeira ou Moscatéis, também pensamos em vinhos com idade. Mas, na pátria do Moscatel (Península de Setúbal), nem todo o vinho doce é feito com as diferentes variantes da casta originária do Mediterrâneo oriental. Há um vinho mítico da José Maria da Fonseca (JMF) que é feito mais ou menos como um Moscatel, só que com a casta Bastardo (Trousseau em França) e que leva a fama e o nome comercial de Bastardinho.
É um vinho fantástico por diferentes razões: pelos seus aromas e sabores; pela acidez que lhe dá longevidade; pelo facto de ser originário de uma terra só nos remete para praias, caos urbanístico e caldeiradas e – agora num registo mais triste – por ser o último lote de Bastardinho que a JMF põe à venda. Quando acabarem estas garrafas de Bastardinho 40 anos, morreu um vinho icónico. Ou, como diz o enólogo e administrador Domingos Soares Franco, "estamos perante o canto do cisne de um vinho carregado de história".
O vinho desaparecerá porque as vinhas que lhe davam origem na região da Costa da Caparica foram substituídas por betão. A última colheita de cachos da casta Bastardo ocorreu em 1983. Mas na adega da JMF havia colheitas bastante recuadas, pelo que foi possível fazer-se a despedida do vinho generoso (que sofre interrupção da fermentação com a adição de aguardente) com um lote cuja média de idade vai rondar os 40 anos.
Em tempos mais recuados, foram lançados no mercado Bastardinhos de 20, 25 ou 30 anos. Mas, como a festa devia ser em grande, Domingos Soares Franco convenceu a família a lançar este 40 anos.
Quem tem alguns anos na crítica de vinhos, participa em eventos organizados pelos produtores. É a vida. E eu, como não quero parecer ingrato, tenho de recordar que quando os jornalistas se juntavam em provas da JMF, o final da refeição era sempre aguardado com "suspense" porque poderia aparecer um Bastardinho 20 ou 30 anos. Eram momentos de reflexão para se perceber como estava a evolução do vinho. E de muita aprendizagem com as explicações de Domingos Soares Franco – homem que gere um património de vinhas e de vinhos moscatéis velhos como não há outro.
E se alguns pensam que a riqueza do vinho se deve a uma certa narrativa romântica, estão bem enganados. Vinhos generosos velhos há muitos, mas nenhum feito com esta casta. Pelo que aqui encontramos certas notas químicas da idade (os vernizes e as acetonas), mas depois as madeiras velhas, as especiarias (canela e cravinho), o melaço e alguns frutos secos. Na boca, grande frescura e grande equilíbrio entre estrutura, álcool e acidez. Faz até lembrar uma mistura de Porto velho com Jerez.
Do ponto de vista vegetativo, nada impediria a plantação de novos vinhedos, visto que a casta não está extinta. O problema é que ela só dá vinhos desta dimensão naquele terroir de areia à beira mar da Costa da Caparica e arredores, ocupado com cimento. Pelo que aqui se passa a certidão de óbito do Bastardinho da JMF. E nem o facto de poder dizer a outras gerações que eu conheci e provei várias vezes o Bastardinho me consola.
Cada garrafa custa €250.
Barato não é, mas estamos perante um tesouro que desaparecerá com esta colheita. Este é o último Bastardinho da José Maria de Fonseca.
Em 2010, o lançamento do vinho do Porto Taylor’s Scion (145 anos) abanou a mentalidade dos produtores e de um nicho de consumidores endinheirados, de tal forma que, hoje, não há empresa de vinho do Porto que não queira descobrir nas suas caves (ou em caves recônditas no Douro) um Porto bem velhinho que possa ser vendido acima dos €3000 a garrafa.
É claro que, quando pensamos em vinhos Madeira ou Moscatéis, também pensamos em vinhos com idade. Mas, na pátria do Moscatel (Península de Setúbal), nem todo o vinho doce é feito com as diferentes variantes da casta originária do Mediterrâneo oriental. Há um vinho mítico da José Maria da Fonseca (JMF) que é feito mais ou menos como um Moscatel, só que com a casta Bastardo (Trousseau em França) e que leva a fama e o nome comercial de Bastardinho.
É um vinho fantástico por diferentes razões: pelos seus aromas e sabores; pela acidez que lhe dá longevidade; pelo facto de ser originário de uma terra só nos remete para praias, caos urbanístico e caldeiradas e – agora num registo mais triste – por ser o último lote de Bastardinho que a JMF põe à venda. Quando acabarem estas garrafas de Bastardinho 40 anos, morreu um vinho icónico. Ou, como diz o enólogo e administrador Domingos Soares Franco, "estamos perante o canto do cisne de um vinho carregado de história".
O vinho desaparecerá porque as vinhas que lhe davam origem na região da Costa da Caparica foram substituídas por betão. A última colheita de cachos da casta Bastardo ocorreu em 1983. Mas na adega da JMF havia colheitas bastante recuadas, pelo que foi possível fazer-se a despedida do vinho generoso (que sofre interrupção da fermentação com a adição de aguardente) com um lote cuja média de idade vai rondar os 40 anos.
Em tempos mais recuados, foram lançados no mercado Bastardinhos de 20, 25 ou 30 anos. Mas, como a festa devia ser em grande, Domingos Soares Franco convenceu a família a lançar este 40 anos.
Quem tem alguns anos na crítica de vinhos, participa em eventos organizados pelos produtores. É a vida. E eu, como não quero parecer ingrato, tenho de recordar que quando os jornalistas se juntavam em provas da JMF, o final da refeição era sempre aguardado com "suspense" porque poderia aparecer um Bastardinho 20 ou 30 anos. Eram momentos de reflexão para se perceber como estava a evolução do vinho. E de muita aprendizagem com as explicações de Domingos Soares Franco – homem que gere um património de vinhas e de vinhos moscatéis velhos como não há outro.
E se alguns pensam que a riqueza do vinho se deve a uma certa narrativa romântica, estão bem enganados. Vinhos generosos velhos há muitos, mas nenhum feito com esta casta. Pelo que aqui encontramos certas notas químicas da idade (os vernizes e as acetonas), mas depois as madeiras velhas, as especiarias (canela e cravinho), o melaço e alguns frutos secos. Na boca, grande frescura e grande equilíbrio entre estrutura, álcool e acidez. Faz até lembrar uma mistura de Porto velho com Jerez.
Do ponto de vista vegetativo, nada impediria a plantação de novos vinhedos, visto que a casta não está extinta. O problema é que ela só dá vinhos desta dimensão naquele terroir de areia à beira mar da Costa da Caparica e arredores, ocupado com cimento. Pelo que aqui se passa a certidão de óbito do Bastardinho da JMF. E nem o facto de poder dizer a outras gerações que eu conheci e provei várias vezes o Bastardinho me consola.
Cada garrafa custa €250.
Barato não é, mas estamos perante um tesouro que desaparecerá com esta colheita. Este é o último Bastardinho da José Maria de Fonseca.