Notícia
Um espião em busca de segurança
John le Carré foi o mestre que tornou a Guerra Fria uma realidade em forma de ficção. Mais do que um livro sobre espionagem, “Um Legado de Espiões” é uma obra sobre os valores que têm marcado as sociedades ocidentais.
O passado pode regressar pedindo que se pague as suas dívidas esquecidas? É isso que descortinamos no novo livro de John le Carré, no qual um agente secreto, Peter Guillam, é retirado da sua reforma ciosa para responder por coisas que fez durante a Guerra Fria. Missões que eram necessárias, e onde a moral dos nossos dias era difícil de aplicar, são agora jogadas por uma geração legalista sem ideia do que estava em jogo na altura e dos meios usados para atingir os objectivos. No fundo, comportam-se como uma espécie de Inquisição dos tempos modernos. Não é um acaso: Guillam era um dos soldados de George Smiley, o espião que John le Carré trouxe para o mundo para nos mostrar o mundo de sombras em que se viveu durante a Guerra Fria, esse tempo já esquecido e que os mais novos desconhecem.
O que é importante aqui é que, neste mundo cada vez mais multipolar e sem certezas, o universo da Guerra Fria foi aquele em que as coisas faziam algum sentido. Havia dois grandes poderes que se baseavam em duas ideologias reinantes a Ocidente e a Leste. E o mundo estava também dividido assim, com esferas de influência. Agora, em vez de duas superpotências, há um número de potências que são cada vez mais poderosas e que já não se baseiam em ideologias. Há um vazio de crenças, já que a religião foi posta em causa, o comunismo revelou-se um fracasso e o capitalismo liberal mostra que cria um maior fosso entre quem tem os meios e quem não tem.
A ameaça nuclear foi agora suplantada pela do terrorismo sem fronteiras e indiscriminado. O mundo está menos estruturado. Talvez seja por isso que John le Carré regressa ao passado: é lá que se sente seguro. Os compromissos morais de então parecem sólidos face à teia de interesses rápidos de agora, neste mundo digital sem fronteiras. Guillam tem muito a esconder. Mas não quer que a claridade surja através da falsa moral dos jovens turcos de hoje, que não entendem o que estava em risco no passado. Estes querem saber o que se passou efectivamente na Operação Bambúrrio, que envolveu o antigo colega de Guillam, Alec Leamas, que foi abatido no Muro de Berlim quando corria em auxílio da namorada, Elizabeth Gold, também morta. Guillam está entre a espada e a parede: "Eu, que fui ensinado desde o berço a negar, negar e voltar a negar - ensinado pelo mesmo Serviço que procura arrancar-me uma confissão?"
Legado aos mais novos
No meio de tudo isto, voltamos sempre a George Smiley, que não dá sinais de vida. Ele que carrega segredos infinitos e que foi o mestre da manipulação. Talvez se tenha afastado por cansaço: "Foi sempre o problema do George, ver ambos os lados de tudo. Isso esgotou-o." Talvez sim, talvez não. Mas este livro é quase o último testamento de Smiley aos mais novos. Aqueles que não compreendem como se vivia e se espiava numa Berlim dividida e onde as lealdades eram escorregadias. John le Carré foi o mestre que tornou a Guerra Fria uma realidade em forma de ficção. A sua personagem Smiley levou-nos aos subterrâneos de uma guerra sem limites entre dois blocos políticos, onde peões se moviam para garantir a vitória no xadrez político.
Quando o Muro de Berlim caiu, muitos pensaram que le Carré iria reformar-se como Smiley. Mas não. Ele soube adaptar-se aos novos tempos. Os seus novos romances mostraram-nos os mundos sombrios e sangrentos onde se moviam as máfias do Leste europeu ou as indústrias farmacêuticas. Mas é por o mundo ter mudado que é interessante regressar a um universo que parece longínquo, onde tudo está explicado, apesar da queda do Muro de Berlim, apesar da derrocada dos blocos, apesar da globalização, apesar do terrorismo global. O seu clássico, "O Espião que saiu do Frio", o livro que, quando foi editado em 1963, mostrava um mundo como nunca deixou de ser, é ainda hoje um dicionário desse tempo.
Nele, recordemos, o ambiente aquecia logo no início quando um agente duplo (o melhor dos que era controlado pelo espião britânico Alec Leamas), que se preparava para fugir para Berlim Ocidental, é abatido pelos agentes de Mundt. Sem agentes infiltrados, os britânicos tentam destruir o núcleo comunista de espionagem, fazendo crer que Mundt é um agente duplo, para que possa ser executado pelos seus. Uma ideia sinistra, enfim, mas real num mundo em que nem todos os agentes eram como James Bond. Mas tudo é diferente do que parece, incluindo os próprios objectivos dos britânicos (a começar por Smiley) e Leamas vê-se como um mero mensageiro de lutas que não domina. A verdadeira operação era contra o número dois de Mundt e não contra ele, ao contrário do que Leamas suspeitava, até porque ele estava prestes a conseguir provar que Mundt era mesmo um agente duplo britânico (que era, efectivamente). É esse o brilhantismo de John le Carré: provar que nada é o que parece.
Quase no fim do livro, Leamas parece esclarecer tudo: "Neste jogo, só há uma lei - retorquiu Leamas. - O Mundt é agente deles; dá-lhes aquilo de que precisam. É bastante fácil de perceber, não é? É o leninismo: a conveniência de alianças temporárias. Que julgas tu que os espiões são? Sacerdotes, santos e mártires? São um deplorável cortejo de tolos vaidosos, e também traidores, sim: maricas, sádicos e bebedolas, gente que brinca aos índios e aos cowboys para dar cor a uma vida reles. Achas que estão muito bem sentadinhos em Londres como frases a sopesar o que é o bem e o que é o mal? Eu teria matado Mundt, se pudesse; tenho-lhe um ódio visceral. Mas agora não. Acontece que eles precisam dele. Precisam dele para que as grandes massas idiotas que tu admiras possam dormir tranquilamente à noite nas suas camas. Precisam dele para a segurança da gente comum, miserável, como tu e eu."
É essa a grande dimensão moral desse livro que, mais do que um livro sobre espionagem, é uma obra sobre os valores que têm marcado as sociedades ocidentais nas últimas décadas. Lendo-o novamente, tantos anos depois de ter sido editado pela primeira vez, percebe-se que a frescura que trouxe à literatura continua viva, como uma memória que é impossível escorraçar.
As aventuras de George Smiley haveriam de continuar nos anos seguintes, mas este primeiro livro de John le Carré é um marco. E "Um Legado de Espiões" tem de ser lido à luz deste clássico. Numa outra obra, Smiley dizia: "Hoje em dia há muita gente que não está motivada. Especialmente em Inglaterra. Há muita gente que vê a dúvida como uma atitude filosófica legítima. Consideram-se no meio, quando, evidentemente, não estão é em lado nenhum. Nunca nenhuma batalha foi ganha por espectadores, pois não?" Mas há muitas dúvidas no olhar de Smiley. As pessoas à sua volta metem-lhe medo, mas ele é uma delas. Está preso numa teia de aranha, em que não há muito espaço para dúvidas. Porque todas as têm, mas não as podem nem devem ter. E, por isso, o resultado é ninguém as ter.
Smiley investiga sempre os erros e as traições dos outros, comandando o mundo das informações. Afinal, como é claro, "a missão de um serviço de informações, anunciou firmemente Smiley, não era fazer jogos de perseguição, mas sim fornecer informações aos seus clientes. Se não conseguisse fazê-lo, os clientes recorreriam a outros vendedores menos escrupulosos ou, pior, entregar-se-iam ao amadorismo da iniciativa própria". E aqui chegamos ao tema central na obra de le Carré: o dilema entre a traição e a lealdade, que poderia ser exemplificado num dos livros protagonizados por Smiley, em que este deixa que executem o seu grande amigo Bill Haydon por ter delatado os seus companheiros e ter passado segredos para o inimigo.
Le Carré, quando escreveu as suas memórias, "O Túnel dos Pombos", mostrava-nos este mundo oscilante em que viveu. As pombas eram o farol desse livro: quando era novo, viu um túnel onde punham os pombos que, largados, serviam os instintos dos atiradores. Mas as que escapavam à morte acabavam por regressar ao local de onde tinham partido. Para voltarem a ir para o terrível túnel. Em "Um Legado de espiões", le Carré volta ao passado onde se sente confortável.
O que é importante aqui é que, neste mundo cada vez mais multipolar e sem certezas, o universo da Guerra Fria foi aquele em que as coisas faziam algum sentido. Havia dois grandes poderes que se baseavam em duas ideologias reinantes a Ocidente e a Leste. E o mundo estava também dividido assim, com esferas de influência. Agora, em vez de duas superpotências, há um número de potências que são cada vez mais poderosas e que já não se baseiam em ideologias. Há um vazio de crenças, já que a religião foi posta em causa, o comunismo revelou-se um fracasso e o capitalismo liberal mostra que cria um maior fosso entre quem tem os meios e quem não tem.
Legado aos mais novos
No meio de tudo isto, voltamos sempre a George Smiley, que não dá sinais de vida. Ele que carrega segredos infinitos e que foi o mestre da manipulação. Talvez se tenha afastado por cansaço: "Foi sempre o problema do George, ver ambos os lados de tudo. Isso esgotou-o." Talvez sim, talvez não. Mas este livro é quase o último testamento de Smiley aos mais novos. Aqueles que não compreendem como se vivia e se espiava numa Berlim dividida e onde as lealdades eram escorregadias. John le Carré foi o mestre que tornou a Guerra Fria uma realidade em forma de ficção. A sua personagem Smiley levou-nos aos subterrâneos de uma guerra sem limites entre dois blocos políticos, onde peões se moviam para garantir a vitória no xadrez político.
Quando o Muro de Berlim caiu, muitos pensaram que le Carré iria reformar-se como Smiley. Mas não. Ele soube adaptar-se aos novos tempos. Os seus novos romances mostraram-nos os mundos sombrios e sangrentos onde se moviam as máfias do Leste europeu ou as indústrias farmacêuticas. Mas é por o mundo ter mudado que é interessante regressar a um universo que parece longínquo, onde tudo está explicado, apesar da queda do Muro de Berlim, apesar da derrocada dos blocos, apesar da globalização, apesar do terrorismo global. O seu clássico, "O Espião que saiu do Frio", o livro que, quando foi editado em 1963, mostrava um mundo como nunca deixou de ser, é ainda hoje um dicionário desse tempo.
Nele, recordemos, o ambiente aquecia logo no início quando um agente duplo (o melhor dos que era controlado pelo espião britânico Alec Leamas), que se preparava para fugir para Berlim Ocidental, é abatido pelos agentes de Mundt. Sem agentes infiltrados, os britânicos tentam destruir o núcleo comunista de espionagem, fazendo crer que Mundt é um agente duplo, para que possa ser executado pelos seus. Uma ideia sinistra, enfim, mas real num mundo em que nem todos os agentes eram como James Bond. Mas tudo é diferente do que parece, incluindo os próprios objectivos dos britânicos (a começar por Smiley) e Leamas vê-se como um mero mensageiro de lutas que não domina. A verdadeira operação era contra o número dois de Mundt e não contra ele, ao contrário do que Leamas suspeitava, até porque ele estava prestes a conseguir provar que Mundt era mesmo um agente duplo britânico (que era, efectivamente). É esse o brilhantismo de John le Carré: provar que nada é o que parece.
Este livro é quase o último testamento de George Smiley - o espião que le Carré trouxe ao mundo - aos mais novos. Aqueles que não compreendem como se vivia e se espiava numa Berlim dividida e onde as lealdades eram escorregadias.
Quase no fim do livro, Leamas parece esclarecer tudo: "Neste jogo, só há uma lei - retorquiu Leamas. - O Mundt é agente deles; dá-lhes aquilo de que precisam. É bastante fácil de perceber, não é? É o leninismo: a conveniência de alianças temporárias. Que julgas tu que os espiões são? Sacerdotes, santos e mártires? São um deplorável cortejo de tolos vaidosos, e também traidores, sim: maricas, sádicos e bebedolas, gente que brinca aos índios e aos cowboys para dar cor a uma vida reles. Achas que estão muito bem sentadinhos em Londres como frases a sopesar o que é o bem e o que é o mal? Eu teria matado Mundt, se pudesse; tenho-lhe um ódio visceral. Mas agora não. Acontece que eles precisam dele. Precisam dele para que as grandes massas idiotas que tu admiras possam dormir tranquilamente à noite nas suas camas. Precisam dele para a segurança da gente comum, miserável, como tu e eu."
É essa a grande dimensão moral desse livro que, mais do que um livro sobre espionagem, é uma obra sobre os valores que têm marcado as sociedades ocidentais nas últimas décadas. Lendo-o novamente, tantos anos depois de ter sido editado pela primeira vez, percebe-se que a frescura que trouxe à literatura continua viva, como uma memória que é impossível escorraçar.
As aventuras de George Smiley haveriam de continuar nos anos seguintes, mas este primeiro livro de John le Carré é um marco. E "Um Legado de Espiões" tem de ser lido à luz deste clássico. Numa outra obra, Smiley dizia: "Hoje em dia há muita gente que não está motivada. Especialmente em Inglaterra. Há muita gente que vê a dúvida como uma atitude filosófica legítima. Consideram-se no meio, quando, evidentemente, não estão é em lado nenhum. Nunca nenhuma batalha foi ganha por espectadores, pois não?" Mas há muitas dúvidas no olhar de Smiley. As pessoas à sua volta metem-lhe medo, mas ele é uma delas. Está preso numa teia de aranha, em que não há muito espaço para dúvidas. Porque todas as têm, mas não as podem nem devem ter. E, por isso, o resultado é ninguém as ter.
Smiley investiga sempre os erros e as traições dos outros, comandando o mundo das informações. Afinal, como é claro, "a missão de um serviço de informações, anunciou firmemente Smiley, não era fazer jogos de perseguição, mas sim fornecer informações aos seus clientes. Se não conseguisse fazê-lo, os clientes recorreriam a outros vendedores menos escrupulosos ou, pior, entregar-se-iam ao amadorismo da iniciativa própria". E aqui chegamos ao tema central na obra de le Carré: o dilema entre a traição e a lealdade, que poderia ser exemplificado num dos livros protagonizados por Smiley, em que este deixa que executem o seu grande amigo Bill Haydon por ter delatado os seus companheiros e ter passado segredos para o inimigo.
Le Carré, quando escreveu as suas memórias, "O Túnel dos Pombos", mostrava-nos este mundo oscilante em que viveu. As pombas eram o farol desse livro: quando era novo, viu um túnel onde punham os pombos que, largados, serviam os instintos dos atiradores. Mas as que escapavam à morte acabavam por regressar ao local de onde tinham partido. Para voltarem a ir para o terrível túnel. Em "Um Legado de espiões", le Carré volta ao passado onde se sente confortável.