Notícia
O mundo amoral de um cacique
Quando Abílio, um autêntico cacique local que tudo domina na sua terra (até o amor das mulheres), morre, assistimos a uma verdadeira peça de teatro sobre um homem que não conhecemos.
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Alma Danada
Parsifal, 166 páginas, 2018
Pode alguém ser quem não é, como cantava Sérgio Godinho há muitos anos? Ou mesmo, acreditar que é quem não é? É neste jogo de espelhos que se move parte deste livro de Paulo Matias, "Alma Danada". Parece um dilema de Hamlet: ser ou não ser? Mas é isso que torna esta ficção tão estimulante. Nem sempre o que parece, é. É essa a alquimia deste livro de Paulo Matias: até ao fim deste "Alma Danada", nunca sabemos se o que parece, realmente é. Mesmo que seja sem o parecer. Paulo Matias troca-nos as voltas. Compreende-se o porquê desde o início: Abílio Guimarães da Torre morreu e enquanto a sua alma goza o privilégio de ainda poder ver o que se passa na Terra, assiste, muitas vezes divertido, à forma como os que o julgaram conhecer o recordam. E homenageiam. Abílio parece um homem de sucesso sem máculas. Mas, enquanto os personagens desfilam, compreendemos que só tem telhados de vidro. Que todos podem ver.
Abílio é um mestre nos territórios secretos do amor e do sexo. Todo nele é um ganho material: as mulheres que cobiça ou os negócios que pretende. Por isso quando vê o presidente da Câmara Municipal a dar os pêsames à sua mulher, Vitória, não deixa de pensar: "Sem opiniões políticas que não fossem as do seu próprio interesse, Abílio oferecera-se para apoiar financeiramente o candidato do Governo e, como uma mão lava a outra, foi-lhe sugerindo que seria importante para a vila converter a velha fábrica têxtil da Guimarães da Torre num luxuoso condomínio habitacional". Claro que Abílio também apoia financeiramente o candidato da oposição, porque nunca se pode colocar todos os ovos no mesmo cesto. Interessa é ganhar, independentemente de quem vença. E essa é sempre a sua lição de vida.
Como escreve Paulo Matias: "(Abílio) aproveitara em vida as oportunidades que tivera, sem hesitações, e sobretudo, sem pensar duas vezes nas consequências. De certa forma habituara-se a que, o que quer que acontecesse, o importante era o que se conseguia e não o que se desejava". Ao mesmo tempo Abílio é uma espécie de Hyde e Jekyll.
Muitas vezes não acreditamos ser possível existir sem mentir. Abílio sabe isso e não tem remorsos. Não é moral nem imoral: é amoral. Ccomo todos os mortais que se julgam deuses, ele tem um calcanhar de Aquiles: o seu amor de sempre, não pela mulher, mas por Sara. Que reencontra, também como um fantasma a pairar sobre a Terra. As almas gémeas estão agora defronte uma da outra. E dão alguma moralidade a toda a história. Paulo Matias sabe contar uma grande história. E que é, ainda mais do que isso, uma história que nos põe a pensar sobre o poder das pessoas quando julgam que são deuses. Actuando não em nome deles, como antigos reis absolutos. Mas como se fossem deuses indiferentes à dor dos outros. Amorais num mundo que esqueceu a moralidade e que absolveu a imoralidade. Paulo Matias cria aqui uma ficção riquíssima. E, depois deste primeiro passo, não deve ficar por aqui. Seria imoral.
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