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O mundo amoral de um cacique

Quando Abílio, um autêntico cacique local que tudo domina na sua terra (até o amor das mulheres), morre, assistimos a uma verdadeira peça de teatro sobre um homem que não conhecemos.

10 de Março de 2018 às 17:00
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Paulo Matias
Alma Danada
Parsifal, 166 páginas, 2018


Pode alguém ser quem não é, como cantava Sérgio Godinho há muitos anos? Ou mesmo, acreditar que é quem não é? É neste jogo de espelhos que se move parte deste livro de Paulo Matias, "Alma Danada". Parece um dilema de Hamlet: ser ou não ser? Mas é isso que torna esta ficção tão estimulante. Nem sempre o que parece, é. É essa a alquimia deste livro de Paulo Matias: até ao fim deste "Alma Danada", nunca sabemos se o que parece, realmente é. Mesmo que seja sem o parecer. Paulo Matias troca-nos as voltas. Compreende-se o porquê desde o início: Abílio Guimarães da Torre morreu e enquanto a sua alma goza o privilégio de ainda poder ver o que se passa na Terra, assiste, muitas vezes divertido, à forma como os que o julgaram conhecer o recordam. E homenageiam. Abílio parece um homem de sucesso sem máculas. Mas, enquanto os personagens desfilam, compreendemos que só tem telhados de vidro. Que todos podem ver.

Só que, ao longo da vida, Abílio criou uma imagem, ou muitas imagens. Típicas de quem percebe desde cedo o poder que tem e a fragilidade de todos aqueles que tentam merecer os seus favores. São esses personagens que dão mais poder a Abílio. E este retribui com gestos e migalhas. Tudo dentro da mais cínica forma de se gerir o poder. Até a razão da sua morte é dissimulada.

Abílio é um mestre nos territórios secretos do amor e do sexo. Todo nele é um ganho material: as mulheres que cobiça ou os negócios que pretende. Por isso quando vê o presidente da Câmara Municipal a dar os pêsames à sua mulher, Vitória, não deixa de pensar: "Sem opiniões políticas que não fossem as do seu próprio interesse, Abílio oferecera-se para apoiar financeiramente o candidato do Governo e, como uma mão lava a outra, foi-lhe sugerindo que seria importante para a vila converter a velha fábrica têxtil da Guimarães da Torre num luxuoso condomínio habitacional". Claro que Abílio também apoia financeiramente o candidato da oposição, porque nunca se pode colocar todos os ovos no mesmo cesto. Interessa é ganhar, independentemente de quem vença. E essa é sempre a sua lição de vida.

Como escreve Paulo Matias: "(Abílio) aproveitara em vida as oportunidades que tivera, sem hesitações, e sobretudo, sem pensar duas vezes nas consequências. De certa forma habituara-se a que, o que quer que acontecesse, o importante era o que se conseguia e não o que se desejava". Ao mesmo tempo Abílio é uma espécie de Hyde e Jekyll.

Muitas vezes não acreditamos ser possível existir sem mentir. Abílio sabe isso e não tem remorsos. Não é moral nem imoral: é amoral. Ccomo todos os mortais que se julgam deuses, ele tem um calcanhar de Aquiles: o seu amor de sempre, não pela mulher, mas por Sara. Que reencontra, também como um fantasma a pairar sobre a Terra. As almas gémeas estão agora defronte uma da outra. E dão alguma moralidade a toda a história. Paulo Matias sabe contar uma grande história. E que é, ainda mais do que isso, uma história que nos põe a pensar sobre o poder das pessoas quando julgam que são deuses. Actuando não em nome deles, como antigos reis absolutos. Mas como se fossem deuses indiferentes à dor dos outros. Amorais num mundo que esqueceu a moralidade e que absolveu a imoralidade. Paulo Matias cria aqui uma ficção riquíssima. E, depois deste primeiro passo, não deve ficar por aqui. Seria imoral.

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