Notícia
O homem com quatro vidas diferentes
O novo livro de Paul Auster requer fôlego para o ler. É uma compacta obra sobre as quatro vidas possíveis de um personagem, Ferguson, que se vão desenrolando até ao início da década de 1970.
Paul Auster 4321
Asa,
870 páginas, 2017
Os livros de Paul Auster são normalmente construídos como uma sala de espelhos. Os acontecimentos acabam, quase sempre, por se estilhaçar em mil pedaços perante os nossos olhos. Neste poderoso novo romance "4321", Auster confronta o leitor com esse jogo de ilusões. Só que aqui é difícil segui-lo: é necessário um esforço adicional para estarmos atentos sem nos perdermos na imensidão destas quase 900 páginas de prosa.
Aqui, o mesmo protagonista, Ferguson, vive quatro diferentes vidas, que vão surgindo em segmentos paralelos ao longo do livro. Seguir o seu destino é um exercício complicado, mas acaba por ser revitalizante. Todos se tornam funcionários da escrita, de uma forma ou de outra, como novelistas, como tradutores ou como jornalistas. No fundo, Auster também se reflecte a si próprio.
Um dos Ferguson vai estudar para a Universidade de Columbia (como o próprio autor fez). Viajamos entre o pós-II Guerra Mundial e o início dos anos de 1970 e todo o livro está salpicado de contornos políticos (e também de referências musicais, de Billie Holiday a Ravel). Outro dos Ferguson, o que se torna jornalista, está apaixonado por Amy Schneiderman, que é uma radical politicamente falando. Observando os acontecimentos a partir da Universidade de Columbia, numa atmosfera desenhada pela guerra do Vietname e pela luta pelos direitos cívicos, um dos Ferguson considera que um jornalista não deve intervir directamente nos acontecimentos, mas observá-los e explicá-los.
Não deixa de ser curioso pensar que Auster começou a escrever este livro muito antes de Donald Trump ser sonhado como candidato a Presidente dos EUA. Mas o livro surge nesta época de ruptura. É interessante pensar que o mundo a que os Ferguson assistem parece ser muito semelhante ao de hoje: estamos numa fase de estilhaçar de tudo o que era adquirido. Depois, há a história: no primeiro capítulo (1.0), um pequeno interlúdio introduz Isaac Reznikoff, um judeu russo de Minsk que chega a Nova Iorque a bordo do "The Empress of China" no primeiro dia de um novo século. Quando desembarca, tem um novo nome: Ichabod Ferguson. A partir daí, começa a saga da família que seguimos ao longo das páginas. As personagens são as mesmas, mas seguem vias diferentes. Ferguson parece tornar-se sempre mais avisado e maduro com a idade. O que é constante é o amor pela mãe e a paixão por Amy, comum a todos eles.
No fundo, o livro reflecte aquilo que sempre foi uma fractura americana, para lá do sonho que parecia mover pessoas de todo o mundo: uns acreditam que vivem numa sociedade que deve ser de todos e onde todos possam viver em conjunto e outros pensam que a América fornece a liberdade individual e isso não implica que tenha de se ter uma consciência social. Os quatro Ferguson que surgem nesta obra são exemplos disso mesmo. Trata-se de uma obra adulta de Auster que volta sempre aos seus universos recorrentes. Quem gosta de Auster, sabe o que encontra aqui: este é um livro que é fruto do seu ADN de sempre.
Asa,
870 páginas, 2017
Os livros de Paul Auster são normalmente construídos como uma sala de espelhos. Os acontecimentos acabam, quase sempre, por se estilhaçar em mil pedaços perante os nossos olhos. Neste poderoso novo romance "4321", Auster confronta o leitor com esse jogo de ilusões. Só que aqui é difícil segui-lo: é necessário um esforço adicional para estarmos atentos sem nos perdermos na imensidão destas quase 900 páginas de prosa.
Um dos Ferguson vai estudar para a Universidade de Columbia (como o próprio autor fez). Viajamos entre o pós-II Guerra Mundial e o início dos anos de 1970 e todo o livro está salpicado de contornos políticos (e também de referências musicais, de Billie Holiday a Ravel). Outro dos Ferguson, o que se torna jornalista, está apaixonado por Amy Schneiderman, que é uma radical politicamente falando. Observando os acontecimentos a partir da Universidade de Columbia, numa atmosfera desenhada pela guerra do Vietname e pela luta pelos direitos cívicos, um dos Ferguson considera que um jornalista não deve intervir directamente nos acontecimentos, mas observá-los e explicá-los.
Não deixa de ser curioso pensar que Auster começou a escrever este livro muito antes de Donald Trump ser sonhado como candidato a Presidente dos EUA. Mas o livro surge nesta época de ruptura. É interessante pensar que o mundo a que os Ferguson assistem parece ser muito semelhante ao de hoje: estamos numa fase de estilhaçar de tudo o que era adquirido. Depois, há a história: no primeiro capítulo (1.0), um pequeno interlúdio introduz Isaac Reznikoff, um judeu russo de Minsk que chega a Nova Iorque a bordo do "The Empress of China" no primeiro dia de um novo século. Quando desembarca, tem um novo nome: Ichabod Ferguson. A partir daí, começa a saga da família que seguimos ao longo das páginas. As personagens são as mesmas, mas seguem vias diferentes. Ferguson parece tornar-se sempre mais avisado e maduro com a idade. O que é constante é o amor pela mãe e a paixão por Amy, comum a todos eles.
No fundo, o livro reflecte aquilo que sempre foi uma fractura americana, para lá do sonho que parecia mover pessoas de todo o mundo: uns acreditam que vivem numa sociedade que deve ser de todos e onde todos possam viver em conjunto e outros pensam que a América fornece a liberdade individual e isso não implica que tenha de se ter uma consciência social. Os quatro Ferguson que surgem nesta obra são exemplos disso mesmo. Trata-se de uma obra adulta de Auster que volta sempre aos seus universos recorrentes. Quem gosta de Auster, sabe o que encontra aqui: este é um livro que é fruto do seu ADN de sempre.