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Na sombra do Presidente Cavaco Silva

O livro do ex-assessor de imprensa de Cavaco Silva é uma das primeiras memórias em Portugal sobre um tempo nos corredores do poder. Fernando Lima lamenta a deterioração da sua relação com o Presidente e toca em temas "quentes" dos bastidores da política.

09 de Setembro de 2016 às 13:00
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Em "Notícias do Planalto", o livro em que Mario Sergio Conti (director da revista Veja entre 1991 e 1997) descreve a relação de Fernando Collor de Mello com a imprensa, durante todo o processo que levou ao "impeachment" deste, lê-se a dado momento: "Collor tinha o senso do espectáculo da política. Sabia que, como num drama, era necessário às vezes sair do palco para não se desgastar." Collor era o homem da televisão, apoiado pela Globo. E, nesses dias, quem tinha os favores da televisão tinha a eleição garantida. Mas ele entrou em conflito com poderes mais amplos. E tornou-se um alvo da imprensa, a começar pela Veja (também instrumental na queda de Dilma). Caiu. Nem mesmo o seu poderoso assessor de imprensa da altura (o criador do "bateu, levou!") o salvou.

O mundo do Brasil de então (e do tempo de Dilma) é muito diferente do de Cavaco Silva em Belém, depois de uma já vasta carreira política como ministro das Finanças, líder do PSD e primeiro-ministro. E Cavaco sempre encarou o palco da política de forma reservada. Não era um político do espectáculo, até porque quando falava, algumas vezes, as palavras pareciam tiros pela culatra. Ainda assim Cavaco foi protegido.

Fernando Lima, que acompanhou o antigo PR durante décadas, e que esteve com ele 10 anos em Belém, foi um dos que na sombra protegeu Cavaco. Até por isso este seu livro, "Na Sombra da Presidência", é um retrato de um homem e de um tempo. Porque se há aqui temas picantes (o "caso" das escutas a Belém, as operações de Sócrates, sobretudo nos meios de comunicação social, o BPN ou o lugar de Luís Montez no meio das relações entre o PS e Cavaco), o ex-PR acaba por ser o epicentro de tudo.

Fernando Lima conheceu Cavaco como poucos desde o tempo em que este foi primeiro-ministro. E, por isso, não esconde a mágoa com a forma como foi afastado de assessor de imprensa da Presidência da República. No dia 10 de Junho de 2010, Aníbal e Maria Cavaco Silva ignoram Lima: "Verdadeiramente chocante, para mim e para a minha mulher, foi quando Cavaco Silva e a mulher passaram por nós (…) e fizeram de conta que não nos conheciam." Lima guardou silêncio sobre esse momento, mas a partir daí foi evidente que nada era já como antes. Tudo começara em Agosto de 2009 quando o Público publicava uma notícia sobre suspeitas levantadas por um assessor de Belém de que a Presidência estava a ser vigiada pelo Governo de José Sócrates. O Diário de Notícias vem depois a divulgar a correspondência entre jornalistas do Público e a "fonte" de Belém. Lima é afastado por Cavaco e isso é noticiado pela Lusa, depois de o PR ter garantido silêncio. Lima fica perplexo: Cavaco deixa-o cair e o assessor busca, em vão, explicações para o facto.

Muito do livro evolui à volta deste tema, que serve mesmo a Lima para falar daquilo que é a sua própria situação no meio de uma gigantesca teia de informação e contra-informação (algo em que o núcleo duro de Sócrates era especialista). O autor escreve mesmo: "Nas operações encobertas, é quase impossível identificar quem age e a mando de quem." E ele sente-se o alvo a abater, porque por essa altura muitos membros do PS diziam que assessores de Cavaco estavam a auxiliar a oposição liderada por Manuela Ferreira Leite. O que é um caso de perspectiva pessoal acaba por se tornar algo mais vasto. Lendo o estimulante livro de Fernando Lima percebe-se melhor o enquadramento da época. Dentro da lógica hegemónica de Sócrates, só Belém escapava ao seu controlo. E por isso Lima fala do negócio PT/TVI, que esteve em vias de se concretizar, em que a operadora portuguesa (onde o PS de Sócrates tinha a sua impressão digital muito identificada), com o aval da Prisa, de José Luís Cébrian, se preparava para adquirir. A informação ficaria, na generalidade, sob a alçada de Sócrates e dos seus "boys". Sobre isso a visão de Lima é sustentada e contundente. E escreve: "O poder socialista vivia permanentemente atento ao que constituísse uma ameaça ao seu domínio. Aproveitando as capacidades das tecnologias da informação, exercia um controlo, em tempo real, de tudo o que fosse dito ou escrito que estivesse em rede. Foi, também, valiosa a cooperação dos serviços de informações."

No meio do complexo "assalto" do núcleo de Sócrates à comunicação social, Lima não esquece o que se passou na vertente financeira. E recorda o BCP, onde chegou Armando Vara, recordando as palavras de Jorge Jardim Gonçalves: "A nomeação de Armando Vara para a administração da Caixa Geral de Depósitos (CGD) foi vista como estratégica para o poder socialista controlar o sector financeiro, um dos principais pilares para o funcionamento da economia. Quem controla a distribuição do dinheiro dispõe, obviamente, de um poder de intervenção acrescido para decidir o que lhe interessa." Ou seja, de Belém, Fernando Lima vislumbra o cerco a Cavaco e também uma nova hegemonia que se estava a criar na sociedade portuguesa. Um capítulo encerra-se com o seu afastamento por Cavaco e outro, depois, com o agudizar da crise financeira e a saída de cena de Sócrates.

Lima está ciente de que cometeu erros de análise ("o meu erro foi não ter valorizado suficientemente, no tempo certo, as vulnerabilidades de Cavaco Silva e da família que eram do conhecimento do então poder socialista. Só tive noção disso depois, quando me caiu a casa em cima") mas, claramente, continua em busca de uma explicação mais plausível para o seu afastamento do núcleo próximo de Cavaco. E acaba por fazer coincidir isso com os cada vez mais notórios erros políticos do PR, como foi o caso das suas declarações sobre a sua própria pensão, que caiu muito mal em todos os sectores da sociedade ("nesse dia, Cavaco Silva centrou-se sobre ele. Uma grande parte dos seus admiradores verificou que o Presidente, do modo como se lamentou do valor da sua pensão, só estava preocupado com ele próprio"). Lima parece ver um outro Cavaco, que desconhecia. Mas o ponto mais interessante destas memórias de um tempo em Belém são as que se relacionam com o paradoxo supremo: Luís Montez.

Casado com a filha de Cavaco, o antigo radialista construiu um império a nível de rádios e da produção de concertos. Levantava-se a questão: quem influencia quem? Lima vai desfilando os dados: Montez era considerado alguém que Cavaco ouvia mas, ao mesmo tempo, o empresário vem dizer que nada disso acontece, embora deixe cair que votou António Costa para a CML (e não em Santana Lopes). Lima questiona-se sobre algumas ligações: "A relação entre Luís Montez e a PT permaneceu sempre um mistério. As marcas da empresa eram largamente utilizadas por Montez, em especial na organização de festivais, como o Meo Sudoeste, com os proventos que a promoção aparentemente justificaria." Ou seja, Montez surge como uma espécie de ponte onde os sectores de Sócrates (PT, Ongoing) querem incluir em negócios de compras de rádios da TVI e, ao mesmo tempo, apoiam através das empresas onde têm uma palavra a dizer (CGD e PT, nomeadamente). Tudo culminaria com a compra do Pavilhão Atlântico já com o Governo PSD/CDS, com o financiamento de um dos vectores do BES. Ou seja, algo não bate bem nesta lógica, até porque Montez surgia como um dos "elos fracos" de Cavaco no "caso BPN".

Mas Lima faz questão de mostrar a aparente incongruência de tudo isto, realçando outro facto: as faces visíveis da Ongoing, Nuno Vasconcellos e Rafael Mora, foram contribuintes da campanha de Cavaco em 2011, com o máximo permitido por lei (25.560 euros cada). Ou seja, que valores mais altos se jogavam, no meio da queda em desgraça de um assessor de imprensa da Presidência da República e no meio de uma aparente luta entre Cavaco e Sócrates? Este, claro, é um paradoxo que talvez um dia seja possível descortinar.

Mas o grande mérito deste livro é que ele é uma das primeiras memórias sobre um tempo nos corredores do poder, algo que sucede frequentemente em Inglaterra ou nos EUA. Mas não em Portugal. Onde o silêncio impera. Fernando Lima abre uma caixa de Pandora e ainda bem que o faz. Portugal precisa de mais memórias assim. Onde a defesa do passado seja uma forma de entendermos melhor a História recente de Portugal.


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