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Mark Twain e o horror

Mark Twain, tal como Joseph Conrad, criticou de forma contundente a chacina que Leopoldo II da Bélgica efectuou no Congo, em nome do "comércio". Este é o seu olhar satírico.

13 de Outubro de 2018 às 17:00
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Mark Twain
O Solilóquio do Rei Leopoldo
Quetzal, 125 páginas, 2018

O horror que foi o Congo do Rei Leopoldo II da Bélgica ficou na memória colectiva através do relato de Joseph Conrad em "O Coração das Trevas". Está tudo lá: a escravatura, o assassínio em massa, a destruição da alma de um povo. Tudo em nome da glória e da riqueza. A exploração do Congo, no quadro da forma como a África estava a ser retalhada pelos europeus em finais do século XIX, ficou mais ou menos definida na Conferência de Berlim de 1884, quando as nações europeias definiram "as condições mais favoráveis ao desenvolvimento do comércio e da civilização em certas regiões de África", como bem recorda António Araújo, na introdução a este "O Solilóquio do Rei Leopoldo", de Mark Twain. Portugal não foi convidado para a reunião magna, porque era visto como uma potência decadente, face aos poderes franceses e ingleses e aos novos "tigres", Alemanha e Bélgica.

Leopoldo II tinha, há muito, o sonho de ter um império colonial, que ultrapassasse a exiguidade da pequena Bélgica. No Congo encontrou a possibilidade de o ter. Mas o "Estado Livre do Congo" era propriedade sua e não da Bélgica. A forma como os estados ocidentais assistiram à chacina no Congo em nome da riqueza e do "comércio" da borracha foi vergonhosa. E foi isso que levou a que o clamor atingisse as capitais europeias, motivasse escritos na imprensa, denúncias várias e livros. E também estimulasse Mark Twain a escrever este "Solilóquio" no início do século XX, mais exactamente em 1905.

Twain estava incomodado e ultrajado com o que ia escutando sobre o que se passava de aterrador no Congo, algo que ultrapassava em crueldade tudo o que se conhecia das atitudes coloniais nessa época. Não era um acaso: os EUA tinham reconhecido o "Estado Livre do Congo" como uma "nação amiga" logo em 1884. Era arrepiante: os EUA eram, na época, um modelo de sociedade civilizada e livre e, ao reconhecerem o horror criado por Leopoldo II, estavam a dar-lhe o aval de "acto civilizacional". A sátira política que é este texto, delicioso, porque se coloca do ponto de vista do rei belga na sua lógica de combater as críticas a que era sujeito, é um exemplo perfeito da qualidade literária de Twain. Através dele percebemos melhor a brutalidade da missão "civilizadora" de Leopoldo II e do cinismo que está por trás das suas iniciativas.

O escritor americano queria apresentar um documento de denúncia do que se estava a passar e que não era para passar em claro. Escreve Twain: "Canibalismo. Relatam casos como este com a mais ofensiva frequência. Os meus caluniadores não se esquecem de destacar que, sendo eu o monarca absoluto e que, com uma palavra, posso impedir no Congo qualquer coisa que decida impedir, tudo o que aí se faça com a minha autorização é um ato meu, um ato pessoal; que sou eu que o faço; que a mão do meu agente é tão verdadeiramente a minha mão como se estivesse ligada ao meu braço; e por isso retratam-me com o manto real, a coroa na cabeça, mastigando carne humana, dando graças, murmurando agradecimentos Àquele de quem provêm todas as coisas boas. Deus meu, quando esses corações moles encontram uma coisa parecida com a contribuição desse missionário perdem por completo a serenidade." Não poderia ser mais contundente.

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