Notícia
“Jakob, o Mentiroso”: enganar o terror com ilusão e sarcasmo
Romance de Jurek Becker, sobrevivente de um gueto e de dois campos de concentração, é um clássico da literatura europeia sobre o Holocausto
O Holocausto, o mal absoluto e até àquela altura indizível e inimaginável, criou uma espécie de trauma, ou crise existencial, na Europa artística, que se traduziu mais ou menos na pergunta como é possível a literatura depois daquilo, e a pintura, a poesia e o cinema. "Jakob, o Mentiroso" apareceu apenas em 1969, um quarto de século depois da II Guerra Mundial, e essa distância terá sido fundamental para ser o livro que é.
Talvez a comparação seja leviana, mas a sua leitura recorda-nos muitas vezes um filme posterior, "A Vida é Bela", de 1997, um clássico de Roberto Benigni inspirado no livro de um sobrevivente de um campo de concentração (o italiano Rubino Romeo Salmoni) e onde o mal indizível era transformado numa realidade paralela – tudo não passava de um jogo, uma brincadeira divertida e emocionante para que um pai consiga vedar aos olhos do filho o horror que o envolvia.
Há em "A Vida é Bela" uma tentativa impossível de trazer felicidade a uma história que todos sabemos não ter. E de iludir a um ponto que não possamos ver o que está à nossa frente e esquecermos o que temos bem presente. Tornar plausível uma mentira. Partir de uma normalização do que é anormal – um campo de extermínio de seres humanos – para viver "normalmente". E a vida normal de uma criança é fazer jogos e brincadeiras. Conseguir essa impossibilidade é um feito do filme.
É-o também de "Jakob, o Mentiroso", que se passa num gueto. A dada altura, uma das personagens tem também um jogo, aproveitar as ocasiões em que um sentinela alemão adormece ao sol e colocar-se à sua frente para que os raios incidam antes nele. Nada nos é explicado e tudo é relatado como normal, mas bem sabemos que não, que é uma forma de o prisioneiro ganhar qualquer coisa, de a sua derrota não ser total, de o sol também ser dele. O sol, porque espreita entre as nuvens, é ainda símbolo de esperança, tal como os rumores de que as tropas soviéticas estão cada vez mais perto, e com elas a libertação.
Jurek Becker foi testemunha direta do Holocausto. Nasceu em Lodz, na Polónia, em 1937 (não é certo o seu ano de nascimento; poderá ter sido anterior). Ainda criança, foi enviado para o gigantesco gueto criado pelos alemães na Polónia ocupada, que albergou mais de 200 mil pessoas. Dali foi enviado para Ravensbruck, campo de concentração nas imediações de Berlim, na Alemanha. Depois seguiu para outro, Sachsenhausen. A sua mãe foi assassinada. Ele sobreviveu e tornou-se escritor e argumentista.
"Jakob, o Mentiroso" foi o seu primeiro livro. A história é passada no mesmo gueto de Lodz. Profundamente humano e sarcástico, é um dos grandes romances sobre o Holocausto. A dada altura, o narrador fala de um guarda que parece ter apenas como função apitar para o almoço. "Chamamos-lhe o Apito, sem qualquer menosprezo, porque não sabemos nada sobre as suas qualidades. A única coisa que temos contra ele é ser alemão, o que vendo bem as coisas não deve por si só ser motivo para se ter uma má opinião sobre ele, mas a sofrimento torna-nos assim injustos."
E depois: "Colocamo-nos em fila, muito controlados e sem o menor empurrão. Foi assim que nos ensinaram, sob ameaça de não comer. Deve parecer que não temos apetite nenhum no momento: comer, outra vez? Uma pessoa mal tem tempo para se acostumar ao trabalho e já está a ser novamente interrompida por uma das muitas refeições."
Certo dia, o protagonista, Jakob é apanhado por um guarda a violar o dever de recolher obrigatório, às oito da noite. É chamado a um edifício, onde nunca um judeu entrou e saiu vivo, para receber o castigo. Mas Jakob escapa porque tudo não passara de uma brincadeira, não eram ainda oito da noite, e é mandado embora. Durante aqueles momentos de tensão e espera, Jakob ouve num rádio que as tropas do Exército Vermelho estavam próximas.
Quando regressa ao gueto, conta a novidade. Mas como ninguém acreditaria que o ouviu numa sala de comando alemão, inventa que ouviu a notícia num rádio que ele próprio tinha escondido (eram proibidos os rádios, como os jornais, os relógios, os animais de estimação, as árvores, as joias…). O rumor espalha-se e Jakob, para não quebrar a sensação de esperança que criou nos companheiros de desgraça, continua a alimentar a mentira de que tem um rádio e é por ele que sabem os avanços da guerra. Mas todos nós sabemos hoje que dos mais de 200 mil prisioneiros os soviéticos, quando lá chegaram, em janeiro de 1945, só encontraram 877.
Legenda: O livro de Jurek Becker (1937-1997) foi várias vezes adaptado ao cinema
Jakob, o Mentiroso
Jurek Becker
Guerra & Paz, 270 páginas, 2022