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A “outra” margem

A ideia de lugar “além” ainda hoje impede a passagem da ponte a muito boa gente, escreve Luísa Costa Gomes no livro “Da Costa – Praias e Montes da Caparica”.

16 de Junho de 2018 às 09:00
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Um dia, penso: que sítio é este onde vivo? Que edifício aberrante ali nasceu? Que fabriqueta no meio das hortas? Que gente vive em cima daquela praia? A escritora Luísa Costa Gomes fez as perguntas, procurou respostas e desta busca resulta o livro "Da Costa - Praias e Montes da Caparica", um retrato de palavras publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no qual se percebe o (eterno?) estigma da outra margem. "A ideia de lugar 'além' ainda hoje impede a passagem da ponte a muito boa gente. Há a noção de que de Lisboa à Caparica é muito longe, e o caminho arriscado, sendo menor a distância psicológica no sentido inverso. Lisboa é centrípeta na imaginação e é sempre melhor ir para lá do que vir de lá", escreve a autora.

Luísa Costa Gomes mora nesse lugar "além" há 30 anos. "A primeira vez que vi a Costa da Caparica, no final dos anos sessenta, era um dia chuvoso de Primavera, e o sítio feioso e triste como a noite. Lembro uma Rua dos Pescadores cinzenta, fechada, pingada daquela humidade marinha insidiosa que nos fazia querer fugir a choramingar. A Costa da Caparica é um desses lugares, como o Algarve, que tem a obrigação de mostrar boa cara ao turista. A outros lugares, nada se exige. Quem se lembra de querer bom tempo em Vieira de Leiria, ou na Figueira da Foz? Em Odeceixe? Mas quem atravessou a ponte, quem demorou duas horas a atravessar a ponte, vindo de sítios que são sítios de pleno direito, onde chove e onde faz sol e tudo o que lhe apetece, não aceita nevoeiro, como em Odeceixe, ou em Santa Cruz, que têm por logótipo a neblina matinal. Quem chega exige calor, sol e - opcional, é certo - uma brisa. Água decente para um banho de mar revigorante. Toda esta margem sul sofre ainda, aliás, deste injusto grau de exigência. Não bastam dezasseis quilómetros de praias autênticas de areia fina a dez minutos de Lisboa, nem apoios de praia que se estendem ao longo do paredão. Não chegam festivais e caldeiradas. Não chegam parques, piscinas, 'equipamentos' de fazer inveja a todas as outras margens. Tem de se ter o Verão eterno, bom e barato, ou foge-nos a freguesia para os Algarves e as costas espanholas."

Para a escrita deste retrato, Luísa Costa Gomes falou com várias pessoas da terra, apaixonadas pelo seu lugar e contadoras de histórias, não esquecendo os fazedores da arte xávega. Destas conversas resultam fotografias escritas que captam o espírito das sucessivas décadas da Costa da Caparica e dos seus arrabaldes. A autora conta como a abundância do peixe chamou comunidades de pescadores para a safra da sardinha. Alguns vinham de Olhão, outros de Ílhavo e, no final do século XVIII, começaram a fixar-se na região. Conta, também, como o isolamento geográfico da região atraía quem fugia à justiça ou não queria ser incomodado por ela. Abrigavam-se nas barracas e eram por isso conhecidos por Barraqueiros, "contribuindo para criar 'má fama' à Costa da Caparica que, até aos primeiros anos do século XX, tinha a imagem de local de frequência pouco recomendável".

Luísa Costa Gomes descreve também como os areais da Costa se estabeleceram, pouco e pouco, como alternativa aos "Estoris" e às praias dos Algarves. "Cascais era fresco, nobre, elitista, amável, discreto, retinindo de vozes claras e bem colocadas, e o Algarve foi deixado quase exclusivamente aos estrangeiros, até aos sessenta." Hoje, "todas as classes vêm à praia. Todas as etnias. De Lisboa, e agora cada vez mais, do mundo inteiro, chega gente que fica cada vez mais tempo. Nisto, a Costa da Caparica cumpriu o seu desígnio de praia universal, multiclassista e multirracial."

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