Notícia
A fome existencial
A recuperação de obra de José Martins Garcia, um dos mais estimulantes prosadores das décadas posteriores ao 25 de Abril, é uma excelente notícia.
José Martins Garcia
A Fome
Companhia das Ilhas,
223 páginas, 2016
José Martins Garcia não viveu perdido num qualquer labirinto: ele encontrou no mundo o resto da rota que conheceu na ilha do Pico e nos Açores. A sua escrita, de uma ironia requintada, reflecte o génio inquieto, que se encontra em toda a sua obra, desde a literária à jornalística. Agora que é recuperada a sua obra (um trabalho meritório da Companhia das Ilhas), fica mais claro o seu espírito de nómada sempre agarrado à sua alma açoriana.
Se "Lugar de Massacre", um dos seus livros mais recordados, foi uma das primeiras incursões da ficção portuguesa no universo da guerra colonial, em "A Fome" encontramos um outro José Martins Garcia. Aquele que bebe muito da comédia de costumes de Eça de Queiroz e que ciranda no mundo singular de Vitorino Nemésio. Não é uma biografia de um jovem que troca os Açores por Lisboa, mas há pontos de contacto entre o que o autor viveu. Mas este livro, sobre um jovem curioso e boémio que se perde (para se tentar reencontrar) nas ruas de Lisboa, é um singular olhar sobre a sociedade portuguesa, sobre os seus sonhos e pesadelos, sobre as suas virtudes e vícios nem sempre confessados.
O título "A Fome" não é um acaso: o personagem é um jovem com fome. Física mas também emocional. António Cordeiro (o açoriano que tenta sobreviver neste Portugal de Salazar, mas onde está sempre presente a complexidade da sua origem) não surge do acaso: é o mesmo nome do autor de "História Insulana", escritor do século XVIII, que acaba muitas vezes por ser chamado às páginas deste livro, numa forma de estabelecer um paralelo com as perplexidades do passado.
E aqui regressamos à fome: Cordeiro sonha com costeletas e bifes, seja no barco que o traz para Lisboa, seja na capital portuguesa. Ao longo das páginas, são inúmeras as referências a esta fome ("Percorri a miséria duma ponta à outra. Consegui, com o apoio do senhor Sérgio e do senhor Pragana, comer a crédito na Pensão Ocidente. Quatrocentos escudos por almoço e jantar, mais barato que por Dona Júlia. Um papo-seco, uma sopa indecifrável, um prato, uma tangerina ou um pêro diminuto, vinho quase só água. Outra casa de loucos, nesse fim de ano de 1956. Estudantes famintos a discutir a Hungria e o Suez. Recomendações várias no sentido de todos calarem o bico, pois a PIDE tinha orelhas incomensuráveis").
Mas há também referência a uma fome mais ampla, que evoca o passado ("Sair de uma ilha obriga a fomes e tormentas. O padre António Cordeiro, excelente latinista entre outras habilitações, meteu-se ao mar, no século XVII, por fome ou tédio ou amor da cultura"). Talvez esteja aí a síntese do afã da descoberta que iluminou a vida e a escrita de José Martins Garcia. O autor, como o personagem (ou como o verdadeiro António Cordeiro), foram nómadas em busca de um sonho que lhes permitisse mitigar a fome. Toda a fome. E talvez isso fosse a busca da liberdade de viver.
A Fome
Companhia das Ilhas,
223 páginas, 2016
José Martins Garcia não viveu perdido num qualquer labirinto: ele encontrou no mundo o resto da rota que conheceu na ilha do Pico e nos Açores. A sua escrita, de uma ironia requintada, reflecte o génio inquieto, que se encontra em toda a sua obra, desde a literária à jornalística. Agora que é recuperada a sua obra (um trabalho meritório da Companhia das Ilhas), fica mais claro o seu espírito de nómada sempre agarrado à sua alma açoriana.
O título "A Fome" não é um acaso: o personagem é um jovem com fome. Física mas também emocional. António Cordeiro (o açoriano que tenta sobreviver neste Portugal de Salazar, mas onde está sempre presente a complexidade da sua origem) não surge do acaso: é o mesmo nome do autor de "História Insulana", escritor do século XVIII, que acaba muitas vezes por ser chamado às páginas deste livro, numa forma de estabelecer um paralelo com as perplexidades do passado.
E aqui regressamos à fome: Cordeiro sonha com costeletas e bifes, seja no barco que o traz para Lisboa, seja na capital portuguesa. Ao longo das páginas, são inúmeras as referências a esta fome ("Percorri a miséria duma ponta à outra. Consegui, com o apoio do senhor Sérgio e do senhor Pragana, comer a crédito na Pensão Ocidente. Quatrocentos escudos por almoço e jantar, mais barato que por Dona Júlia. Um papo-seco, uma sopa indecifrável, um prato, uma tangerina ou um pêro diminuto, vinho quase só água. Outra casa de loucos, nesse fim de ano de 1956. Estudantes famintos a discutir a Hungria e o Suez. Recomendações várias no sentido de todos calarem o bico, pois a PIDE tinha orelhas incomensuráveis").
Mas há também referência a uma fome mais ampla, que evoca o passado ("Sair de uma ilha obriga a fomes e tormentas. O padre António Cordeiro, excelente latinista entre outras habilitações, meteu-se ao mar, no século XVII, por fome ou tédio ou amor da cultura"). Talvez esteja aí a síntese do afã da descoberta que iluminou a vida e a escrita de José Martins Garcia. O autor, como o personagem (ou como o verdadeiro António Cordeiro), foram nómadas em busca de um sonho que lhes permitisse mitigar a fome. Toda a fome. E talvez isso fosse a busca da liberdade de viver.