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Tintin e a Rússia dos sovietes a cores

Na altura em que foi desenhada, para um jornal muito conservador da Bélgica, “Tintin au Pays des Soviets” era eco dos temores sobre a revolução russa. Era um Tintin ainda em construção, mas já com as lógicas que o iriam tornar um herói da BD.

03 de Fevereiro de 2017 às 12:30
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Talvez não seja um acaso histórico: um século depois da Revolução Russa de 1917 é publicada, numa versão colorida, a primeira aventura de Tintin, passada no país dos sovietes, editada originalmente no suplemento juvenil do jornal belga conservador (e de simpatias nazis) Le Vingtième Siècle entre 1929 e 1930. O herói era um jovem repórter belga que, acompanhado do seu cão (Milou), parte para a URSS para escrever sobre as políticas do governo bolchevique de Estaline. A tentativa de Tintin para expor a pobreza e a repressão na URSS leva a que os agentes dos serviços secretos soviéticos, o OGPU, o tentem matar. A obra é, claro, alinhada ideologicamente, de uma forma quase propagandística, algo normal numa época de grandes atritos políticos. Hergé (Georges Remi de seu verdadeiro nome) acabaria por, ao longo dos anos, e mesmo durante a II Guerra Mundial, ir refinando a sua personagem, que acabaria por se tornar uma das mais marcantes da chamada escola franco-belga de banda desenhada.

Há em Tintin uma clara evocação do mundo juvenil do próprio Hergé. Na conservadora e católica Bélgica de antes da II Guerra Mundial, um dos poucos locais onde um jovem poderia fazer algo de excitante era nos escuteiros. Antes de Tintin, Hergé criou mesmo um herói, Totor, que era líder dos escuteiros. O ideal do seu herói estava ali: rapazes unidos pelos valores da honra, da capacidade de sobrevivência e de análise. Mas, quando se dedica à banda desenhada, Hergé está no ninho de um universo muito conservador. O padre Wallez, director do jornal onde publica Tintin, tem uma fotografia de Mussolini junto dele. E, depois da aventura do repórter no mundo dos soviéticos, Wallez diz que Hergé deve colocar Tintin no Congo, a colónia belga. O resultado é uma obra claramente racista, como é possível ver.

Tintin ainda não é o herói, claramente definido no desenhado e na lógica que ganharia nos anos seguintes. Onde Hergé se liberta das amarras ideológicas e, apesar de conservador, cria um herói sem fronteiras e com um desenho mais definido e elegante. Basta ver que, em "O Lótus Azul", de 1936, Tintin defende os chineses na guerra com os japoneses. "A Ilha Negra", de 1938, tem um vilão alemão, o doutor Muller. No "Ceptro de Ottokar", passado nos Balcãs, surge um temível ditador, Musstler, cujo nome evoca a conjugação de Mussolini e Hitler. Durante a guerra, nas páginas do Le Soir, Hergé tem de colocar Tintin noutros universos que não tocassem com a política. A Bélgica estava ocupada. Surge então o célebre capitão Haddock, alcoólico e fundamental para dotar a série de grandes momentos de humor. O excelente "O Segredo do Unicórnio" é dessa época.

É por isso que "Tintin au Pays des Soviets" é um produto da sua época, mas nele estão já definidas as coordenadas que iriam tornar o jovem repórter num dos heróis supremos da banda desenhada europeia e mundial. Com o tempo, outras personagens foram adicionadas ao mundo de Tintin, como os incompetentes detectives Dupond e Dupont, madame Castafiore ou o professor Tournesol. Tudo caminhava para os grandes momentos de glória de Tintin, onde a arte de Hergé atingiu o seu pico, sobretudo em "Tintin no Tibete", de 1960. Os fãs de Tintin sabem o que os impressiona neste universo cheio de imaginação e aventura. Por isso, o regresso a "Tintin au Pays des Soviets" (que deverá ter edição portuguesa daqui a alguns meses) é uma forma de encarar Tintin (e Hergé) num contexto histórico, repleto de condicionalismos ideológicos. Mas é uma forma de percebermos melhor a história da banda desenhada na Europa.



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