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Susana Santos Silva: Quando a música improvisada é boa, soa a música escrita

Cresceu no Porto, estudou na Holanda e agora vive na Suécia. Susana Santos Silva é trompetista. Aprendeu com o avô, tocou na Banda Marcial da Foz do Douro, fundada pelo trisavô, estudou depois no Conservatório. Veio a Lisboa para tocar na Fundação Gulbenkian, durante o Jazz em Agosto.

Bruno Simão
Susana Moreira Marques 04 de Agosto de 2017 às 14:00
Susana Santos Silva é trompetista. É daquelas pessoas que, quando fala do seu trabalho, os olhos brilham, mesmo quando descreve dificuldades, por exemplo, as difíceis rotinas de um instrumento exigente, que obriga o corpo a trabalhar como um atleta. Cresceu no Porto, estudou na Holanda e agora vive na Suécia. Não é fácil conseguir acompanhar todos os projectos em que está envolvida. Veio tocar à Fundação Gulbenkian, durante o Jazz em Agosto, numa formação escandinava. Um bom concerto é quando a música acontece, sem que ninguém saiba antes o que poderá acontecer.

É quando os músicos são tão bons improvisadores que contam histórias que não estavam escritas. Susana Santos Silva encontra prazer nesse confronto diário com o desconhecido, com a surpresa. Dá para ver que pode ser viciante; um vício disciplinado e produtivo, que a cada momento inventa as suas próprias regras.


1. Agora não fico muito nervosa antes de entrar em palco. Nem sempre foi assim. Até há poucos anos, ficava sempre muito nervosa. Acho que essa mudança é reflexo de um processo de descoberta da minha própria voz. A partir do momento em que comecei a fazer aquilo que realmente sentia, que me era natural, todas as dúvidas, os nervos, a ansiedade, começaram a desaparecer. Tive momentos complicados no passado, mas agora não, não tenho qualquer tipo de medo: confio que vai correr sempre bem e que vou encontrar o caminho.

Pode, de facto, causar ansiedade ir para o palco, como ontem [na Fundação Calouste Gulbenkian, durante o Jazz em Agosto] sem fazer a mínima ideia do que vou tocar, do que vai acontecer, de como vamos começar e de como vamos acabar. Ir assim sem planeamento, uma estrutura, nada. Mas agora confio que a, partir da primeira nota, tudo isso desaparece e a música flui. E, ontem, foi assim.

Com este projecto, com o qual toquei na Gulbenkian, improvisamos desde o princípio. O projecto surgiu de um convite de um festival na Finlândia para eu montar uma banda escandinava. Convidei os músicos e tinha a ideia de escrever música. Não escrever muita música, mas pôr em papel algumas ideias que fossem um ponto de partida para a improvisação. Só que não consegui juntar os músicos antes do primeiro concerto, e portanto encontrámo-nos pela primeira vez em palco sem que uma palavra fosse dita antes. Esse concerto foi gravado pela rádio finlandesa e editado no ano seguinte. E tudo sem nenhum planeamento, sem conceito, sem nenhuma conversa. A única coisa que existia era o nome que dei à banda: Life and Other Transient Storms. E a escolha dos músicos, tendo em mente o tipo de música que queria fazer. Foi a única partitura que trouxe.

Depois disso, cheguei à conclusão de que não valia a pena escrever música [para este projecto], porque os músicos eram improvisadores fantásticos e, se calhar, estar a trazer música escrita seria como pôr algemas na música.

Quando a música improvisada é boa, feita por músicos bons, soa a música escrita. Tem um desenvolvimento, tem uma história com princípio, meio e fim. Porque são composições, só que acontecem no momento, em tempo real.

2. É muito inspirador chegar a um palco e conhecer um músico pela primeira vez. É como conhecer uma pessoa nova através de uma conversa. É uma sensação de estar a conhecer o outro, de ver onde é que ele nos vai levar. E é, de certa forma, muito intimista. Principalmente em duos, que é um formato de que gosto particularmente. É muito directo. Não há distracções e não nos podemos esconder atrás de mais ninguém. É muito cru e nu, às vezes difícil, e às vezes fantástico.

O próprio processo do encontro passa a fazer parte da música em si. Esse processo de exploração e experimentação, de às vezes não funcionar muito bem e, de repente, encontrarmo-nos no meio do caos e, depois, divergirmos outra vez.

3. Há poucas mulheres no mundo do jazz, principalmente em Portugal. Na Suécia, por acaso, há muitas. Eles têm uma política muito forte de paridade de género e isso ajuda. Não sei se ajuda a que apareçam mais mulheres a tocar, mas pelo menos ajuda a que elas se mantenham activas. Neste momento, se pensar em músicos para convidar para formar um projecto novo, há imensas mulheres que me vêm à cabeça, mas sem estar a pensar em género, sem estar a pensar: ah, tenho de convidar mulheres.

Um dos projectos mais recentes que tenho é um projecto de quatro mulheres e não nos juntámos porque queríamos fazer uma banda só de mulheres; simplesmente queríamos tocar juntas.

Já me fizeram muitas vezes a pergunta se foi mais difícil começar por ser mulher e tenho dificuldade em responder. Agora, se olhar para trás, percebo que existe discriminação de alguma forma, nem que seja pela positiva. Eu era a menina, a mascote. Sempre me senti acarinhada e nunca tive qualquer problema, mas também nunca me questionei. Comecei a tocar com sete anos. Foi o meu avô que me ensinou a tocar trompete. Fui tocar na Banda Marcial da Foz do Douro, que tinha sido fundada pelo meu trisavô. Eu, os meus irmãos, os meus primos. Depois fui para o Conservatório. E nunca pensei muito sobre o assunto, nunca questionei porque é que não existiam mais raparigas a tocar.

4. O trompete é um instrumento duro. Implica uma luta constante. Obriga a uma relação de amor e ódio. É um instrumento difícil fisicamente e por isso é que não há tantos trompetistas como há saxofonistas ou guitarristas... E é também essa a razão pela qual os trompetistas são todos tão diferentes uns dos outros. É um instrumento tão difícil que cada um tem de encontrar a sua própria forma de conseguir ultrapassar as dificuldades.

Toco todos os dias. Ou quase todos os dias. Às vezes, quando viajo muito, não consigo tocar diariamente. Mas tento fazê-lo diariamente, para manter a embocadura e a técnica. Como é muito físico, os músculos têm mesmo de estar em forma. Se não estiver em forma, ou se não aquecer antes de um concerto, em cinco minutos fico cansada.

5. Gosto da vida de "tournée", gosto muito, mas às vezes é demasiado cansativo. Agora vou a casa uns dias, depois saio outra vez, depois volto mais uns dias. Parece que nunca tenho tempo de assentar. De ficar a trabalhar um bocadinho mais em casa, de praticar mais intensamente ou de escrever música, que é uma coisa para a qual não tenho tempo físico e mental, sobretudo tempo mental, para acalmar entre as viagens e os concertos.

Gostava de escrever mais música mas, para mim, é um processo complicado. Quando componho tenho todo o tempo do mundo para o fazer e torna-se difícil tomar decisões: porquê esta nota aqui? Porquê esta harmonia? Porque não esta? Ou porque é que estou a escrever isto? Se calhar por isso é que gosto tanto de improvisar, não tenho tempo de pensar, é tudo muito intuitivo e espontâneo. Tenho planos de escrever para um novo projecto, mas não sei quando é que vou conseguir concretizar. Vai acontecer, mais cedo ou mais tarde.


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