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Sérgio Marques: A emoção pela arte faz-nos multiplicar a vida por mil

As ideias estão sempre a fermentar na cabeça de Sérgio Marques. Criou o Cinema Fora do Sítio, no Porto, e o Fitas na Rua, em Lisboa. Agora está a dinamizar o projecto “Video Lucem” que leva cinema às igrejas algarvias. No dia 8 de Fevereiro, Tavira recebe o filme “O Vento”, de Victor Sjöström, com o pianista Filipe Raposo a tocar órgão de tubos.

Miguel Baltazar
19 de Janeiro de 2018 às 14:00
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Sérgio Marques proporciona encontros entre os filmes e as pessoas. O resto acontece. Nasceu no Porto e, quando trabalhava como coordenador cultural na Inatel, encontrou uma tela e um projector de 35 milímetros e pensou: porque não fazer projecções ao ar livre, recuperando a ideia do cinema ambulante? Pouco depois, o filme "Os Respigadores e a Respigadora", de Agnès Varda, foi projectado no Mercado do Bom Sucesso, com as pessoas sentadas em sacos de batatas. Assim nascia o Cinema Fora do Sítio. Sérgio foi criando iniciativas semelhantes, como o Fitas na Rua. Há dois anos, foi convidado pelo Cineclube de Faro para dinamizar o projecto "Video Lucem" (expressão latina para "vejo luz"), que leva cinema às igrejas algarvias. No dia 8 de Fevereiro, Tavira recebe o filme "O Vento", de Victor Sjöström, com o pianista Filipe Raposo a tocar órgão de tubos. A 2.ª edição do "Video Lucem" encerra no mês de Maio em Vila Real de Santo António com os "Os Faroleiros", ao som dos Dead Combo.


Nós só temos de fazer o encontro acontecer e o resto acontece. O que eu quero é sobretudo criar uma oportunidade para os filmes serem colocados em frente às pessoas.

Durante muitos anos, fiz o Cinema Fora do Sítio, um projecto de cinema ao ar livre que associava os filmes aos locais de projecção. Depois fui para Lisboa lançar o Fitas na Rua e, entretanto, vou estando envolvido em iniciativas semelhantes, como o "Video Lucem", um projecto financiado pelo programa 365 Algarve para promover actividades culturais durante a época baixa. Fui desafiado pelo Cineclube de Faro para criar sessões em vários locais da região, mas o território algarvio tem falta de centros culturais e auditórios e, por isso, optámos pelas igrejas que estão espalhadas por todo o lado. Falámos com o bispo do Algarve, que mostrou muita abertura para fazer esta coisa um bocadinho louca. Acordámos com os padres que os filmes não iriam ter imagens de sexo, mas tinham de ser filmes para fazer pensar.

No ano passado, participaram 22 igrejas e chegámos a passar, em Aljezur, "O Sabor da Cereja", de Abbas Kiarostami, um filme sobre um homem que quer suicidar-se. No final, o padre Nelson falou com os seus paroquianos sobre a questão da liberdade. Tivemos sessões muito mágicas. Passámos realizadores como o Pasolini e o Manoel de Oliveira, queríamos que as pessoas tivessem oportunidade de ver filmes que provavelmente nunca iriam ver.


Gosto de ir ver um filme para me surpreender, gosto de entrar num mundo que não é o meu mundo, gosto da ideia de me deixar ir.


Este ano, decidimos fazer cineconcertos com filmes mudos e desafiámos alguns músicos para criarem obras sonoras. Já passámos curtas do Chaplin com a [cantora] Maria João, passámos o filme "A Mãe" (a partir da obra de Maxim Gorki), de V. Pudovkin, com o Custódio Castelo, e projectámos "Os Lobos", de Rino Lupo, acompanhado ao piano pelo Nicholas McNair. No dia 8 de Fevereiro, vamos a Tavira levar o filme sueco "O Vento", de Victor Sjöström, com o pianista e compositor Filipe Raposo, que vai tocar órgão de tubos. Depois vamos ter o Noiserv em Ferragudo, com o filme "Sherlock Holmes Jr.", de Buster Keaton. O Noiserv foi mesmo uma escolha do padre Miguel Neto, que também nos pediu os Dead Combo!

As igrejas são espaços privilegiados de encontro e ver um filme num espaço como esse é ver um filme no colectivo, ou seja, é uma experiência única de cada um e, no entanto, é uma experiência conjunta. Não sabemos bem porquê, mas o cinema toca nas pessoas, e toca num lado desconhecido. Poderíamos pensar que passar cinema mais comercial seria mais fácil, mas isso não faz sentido porque nunca sabemos bem o que vai chegar às pessoas.

Comecei a ver filmes como qualquer criança. A primeira imagem que tenho do cinema é de ir com o meu pai ver um filme da Walt Disney, mas a primeira memória mais tocante é a de um filme a preto e branco, penso que era "A Noite do Caçador", do Charles Laughton. Aquelas imagens ficaram gravadas. Sempre senti disponibilidade para ver coisas diferentes e essa disponibilidade, se calhar, terá feito a diferença na minha vida, mas não sei se isso tem que ver com o cinema ou com a literatura. Sempre gostei de ler e acho até que abrir um livro ou ver um filme são processos semelhantes. Basicamente, disponibilizamo-nos para observar o que alguém tem a dizer ou como alguém conta uma história, e esse é um gesto generoso da nossa parte.

Gosto de ir ver um filme para me surpreender, gosto de entrar num mundo que não é o meu mundo, gosto da ideia de me deixar ir. A emoção pela arte faz-nos multiplicar a vida por mil.

Comecei a ver cada vez mais filmes e os filmes começaram a tocar-me. Mas o cinema como trabalho foi um acaso. A minha formação levar-me-ia a ser professor de Educação Visual, cheguei a fazer estágios, mas aquilo não era para mim, eu tinha medo que as crianças se magoassem… Sim, tinha pesadelos a achar que os alunos iam bater com a cabeça na esquina das mesas (risos). Percebi que não podia ser professor. Então, estudei Animação Social e fui parar à delegação do Porto da Inatel, como coordenador cultural. Encontrei por lá uma tela e um projector portátil de 35 milímetros. O material estava parado e eu pensei: porque não fazer cinema ao ar livre, recuperando um bocadinho aquela ideia do cinema ambulante das aldeias?


Lisboa tem actividade a mais e o resto do país tem actividade a menos. Acho muito injusto, por exemplo, o facto de a Cinemateca não fazer programas espalhados pelo país. 


Começámos a passar filmes, associando-os aos locais onde eram projectados. Por exemplo, a obra "Os Respigadores e a Respigadora", da Agnès Varda, foi exibida no Mercado do Bom Sucesso com as pessoas sentadas em cima de sacos de batatas! Assim nasceu o Cinema Fora do Sítio. Passámos o "Palavra e Utopia" do Manoel de Oliveira, na Igreja Românica de Cedofeita, passámos o "Mulholland Drive", do David Lynch, no topo do parque de estacionamento do Via Catarina, fomos a uma praia da Foz projectar o "Buena Vista Social Club", do Wim Wenders…

Depois fui para o Algarve fazer o Cinema Fora do Sítio em várias aldeias. Passámos filmes à porta das igrejas, em jardins e coretos. Foi muito comovente. Lembro-me de uma sessão em Guerreiros do Rio, ao lado do Guadiana, onde as senhoras tinham ido ao cabeleireiro porque já não iam ao cinema há 40 anos... Fizemos mais de 100 sessões com projectores antigos. Íamos acompanhados por um senhor velhinho. Era o senhor Marques, o antigo projeccionista do Cineclube do Porto. Ele era funcionário dos correios, mas vivia fascinado pela projecção. Este lado técnico da película é mágico e os projeccionistas têm muito em si a história do "Cinema Paraíso". No Alentejo, até há um senhor muito engraçado [António Feliciano] que anda numa carrinha a fazer cinema ao ar livre.

A seguir ao projecto do Algarve, veio o Fitas na Rua, nos bairros e jardins de Lisboa. Até estivemos no Panteão! Passámos um filme do Edgar Pêra sobre o Carlos Paredes e uma curta do João César Monteiro sobre a Sophia de Mello Breyner. Acho boa ideia dinamizar este tipo de espaços. Gosto que sejam espaços de vida e não mausoléus... Acabámos o Fitas por decisão minha. Os projectos não devem ser infinitos e temos de ser humildes o suficiente para perceber quando é que podem estar a esgotar-se. É preferível que acabem num momento bom e não num esgotamento, porque o esgotamento deixa uma má marca. É melhor ficar uma boa memória.

Tenho sempre muitas ideias. Agora quero projectar filmes para crianças num cinema insuflável. É uma sala pequenina que se monta em 20 minutos. Carrega-se no botão, aquilo faz "flop", entram 30 crianças lá para dentro para ver animação diferente da que passa no canal Panda. Há cinema russo incrível! A ideia é fazer um bocadinho aquilo que o Vasco Granja fez com as pessoas da minha idade.

Gostava de levar este projecto a vários sítios, não tanto a Lisboa, porque Lisboa tem actividade a mais e o resto do país tem actividade a menos - acho muito injusto, por exemplo, o facto de a Cinemateca não fazer programas espalhados pelo país. Eu não queria que a Cinemateca saísse de Lisboa, queria que a Cinemateca deixasse que os programas circulassem. Os filmes, agora, são discos externos que circulam. A história do cinema tem de ser para todos! 



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