Notícia
Satirizar é o melhor remédio?
O presidente dos EUA tem dado muita "matéria-prima" aos guionistas e já se fala mesmo numa época de ouro para a comédia. No meio artístico norte-americano há claramente um movimento anti-Trump. Mas, afinal de contas, que papel tem a sátira política em tempos conturbados? Será apenas uma válvula de escape ou é também uma arma política?
Na noite anterior à tomada de posse de Donald Trump, o cineasta Michael Moore, autor de vários documentários com fortes críticas ao sistema político americano, disse numa manifestação em Nova Iorque: "Se troçarem dele [Trump], se o ridicularizarem ou se simplesmente lhe mostrarem que não é popular (…), ele vai implodir. Este é o seu calcanhar de Aquiles." Moore apresentava uma estratégia para atingir o novo inquilino da Casa Branca. "Formemos um exército de comediantes e vamos derrubá-lo." O repto parece ter surtido efeito. A sátira política, muito focada em Trump, está a borbulhar nos programas da televisão norte-americana e bate recordes de audiências. Programas como The Late Show (CBS), Last Week Tonight (HBO), Full Frontal (TBS) e The Daily Show (Comedy Central) são alguns exemplos. Mas aquele que tem sido um autêntico campeão na captação de telespectadores é o Saturday Night Live (SNL). A NBC, o canal que o transmite, anunciou que esta está a ser a melhor temporada dos últimos 22 anos, com uma média de 10,6 milhões de espectadores por episódio.
A estação até aumentou os preços da publicidade no programa em Janeiro. E, de acordo com o Standart Media Index, que mede os gastos das agências de publicidade, em média um "spot" de 30 segundos custa agora mais 86% do que há um ano. A revista especializada Adweek estima que as receitas de publicidade no programa tenham subido quase 10% só no primeiro mês do ano.
Alec Baldwin, o actor que "encarna" Donald Trump no SNL, está a viver uma época de ouro na sua carreira. Em declarações à Reuters, confessou que quando começou a sua interpretação de Trump, em Outubro de 2016, ainda durante a campanha eleitoral, "não tinha percebido que estava morto em termos de comédia". O actor diz que esta personagem o fez "acordar do coma". Quem já mostrou que não gosta da brincadeira é o visado nos "sketches" da equipa de comediantes. Através do Twitter, Donald Trump vai reagindo de forma mais ou menos inflamada. "Acabei de tentar ver o Saturday Night Live: é impossível assistir! Totalmente tendencioso, nada engraçado e a interpretação de Baldwin não podia ser pior. Triste", escreveu o Presidente depois da apresentação de um episódio que satirizava precisamente o seu comportamento nas redes sociais. Outros elementos do executivo também não escaparam à sátira do programa. Entre eles o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, interpretado pela actriz Melissa McCarthy, que é conhecido pela sua relação dura com os jornalistas. A própria filha de Trump, Ivanka, foi a "estrela" de um "sketch" interpretado pela actriz Scarlett Johansson, que parodiava um anúncio a um perfume com o nome "Cumplicit" (Cúmplice). Os "sketches" do programa humorístico, no ar há 42 anos, estão a ter tanto sucesso na televisão e na internet que há artistas a oferecerem-se para interpretar os membros do executivo da Casa Branca ou mesmo a família do Presidente.
O meio artístico dos Estados Unidos "afiou as garras" contra esta administração. São vários os músicos, actores e realizadores que têm tecido duras críticas às medidas impostas por Trump. E ele responde, no Twitter.
Uma faca de dois gumes
Geoffrey Baym, director e professor do departamento de Estudos de Media e Produção da Universidade norte-americana de Temple, em Filadélfia, considera que o 11 de Setembro e a invasão do Iraque marcaram o início de uma nova era na sátira política nos Estados Unidos. "O jornalismo não estava a funcionar como uma crítica formal ao governo do Presidente George W. Bush. Foi então que Jon Stewart e Stephen Colbert [humoristas e apresentadores de programas de televisão] se tornaram vozes importantes no cenário político americano", disse à BBC Mundo este antigo produtor de informação televisiva. Para o académico, "nos regimes políticos autoritários, a comédia e a sátira em particular são mais eficazes do que os ataques explícitos ao poder político". Isto porque "enquanto os adversários políticos podem ser diminuídos, atacados e até presos, as pessoas do mundo do entretenimento e os comediantes são mais imunes à crítica". E há outro ponto a favor. "A comédia tem a capacidade de cruzar fronteiras e apelar a uma audiência maior e mais variada do que muitos meios de informação."
O "fenómeno Trump" também cruzou fronteiras e inspirou humoristas um pouco por todo o mundo. Foram vários os vídeos que se tornaram virais nas redes sociais que, pegando no slogan da campanha do milionário "America first", reclamavam que os seus países deveriam estar posicionados logo a seguir. A paródia começou na Holanda, mas rapidamente alastrou a outros países, entre eles Portugal.
O humorista Ricardo Araújo Pereira refere que a sátira política "sempre teve um apelo bastante grande". Afinal, "a ideia de podermos rir dos nossos dirigentes é atraente" e "a personalidade de Trump talvez contribua para intensificar isso". Mas alerta para o perigo de "as características, digamos, folclóricas de Trump", que "são muito apetitosas para a comédia", poderem "desviar a atenção de outros assuntos mais importantes". E exemplifica: "Que Trump acuse o seu antecessor de o ter espiado é, obviamente, escandaloso; mas o facto de estar a reverter todas as políticas que tentavam regulamentar as instituições financeiras, para evitar uma repetição da crise de 2008, pode ter mais impacto na nossa vida." Quanto ao fenómeno dos recordes de audiência dos programas de sátira política nos Estados Unidos, Ricardo Araújo Pereira sublinha que é preciso não esquecer que há vários factores que contribuem para isso. Um deles é "o facto de atraírem espectadores que já pensam como os autores do programa".
O Grande Ditador
Ao longo dos séculos, fazer pouco dos poderosos funcionou como uma válvula de escape. Que papel tinham os bobos da corte na Idade Média? Divertir o rei e quem o rodeava. Mas também apontar o dedo aos podres da sociedade. Eram os "palhaços de serviço", os únicos que podiam criticar, através da sátira, sem correr risco de vida. Já no século XX houve comediantes que sentiram na pele a fúria dos ditadores, em regimes autoritários. Uns foram ameaçados de morte, outros perderam mesmo a vida e outros viram os seus programas televisivos ou peças de teatro cancelados.
Charlie Chaplin foi um dos artistas que sentiram a pressão. A 15 de Outubro de 1940, em plena II Guerra Mundial, estreou o filme "O Grande Ditador" em Nova Iorque. Três anos antes, o cineasta tinha iniciado a produção daquela que seria a sua primeira película inteiramente falada e sonorizada, ainda sem imaginar o cenário de horror que se vivia na Europa. O filme era uma sátira a Adolf Hitler, mas também ao fascismo e a Mussolini. Ficou na História a cena em que Hynkel, o ditador interpretado por Chaplin, brinca com um balão em forma de globo terrestre. Uma alegoria às ambições do verdadeiro ditador, Adolf Hitler, que a partir da Alemanha pretendia dominar o mundo. Chaplin recebeu ameaças durante a rodagem e vários executivos da indústria cinematográfica tentaram convencê-lo a desistir do projecto. Valeu-lhe a intervenção do Presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, que o encorajou a prosseguir. O filme viria a tornar-se no maior sucesso de bilheteira do cineasta. Na sua autobiografia, Chaplin revela que se tivesse tido conhecimento da dimensão real dos horrores que aconteceram nos campos de concentração nazis quando estava a rodar o filme, não o teria conseguido fazer. Hitler não permitiu que "O Grande Ditador" fosse exibido na Alemanha, nem nos países que estavam sob o seu controlo. Em Espanha, a película também foi banida até à morte de Franco, em 1975.
Comédia à portuguesa
Nos bastidores do programa Donos Disto Tudo (DDT) preparam-se os últimos pormenores técnicos para começar a gravar. Os actores já estão a postos no "set". Enquanto se ajustam os planos das câmaras, a iluminação e o som, vão ensaiando o texto. O tema do "sketch" é a vinda do Papa a Portugal a 13 de Maio, no centenário das aparições. Manuel Marques "encarna" o Sumo Pontífice. É ele também que dá vida a Cavaco Silva, José Sócrates, Mário Centeno e Jerónimo de Sousa no programa humorístico, que passa aos sábados à noite na RTP1. O actor explica que, para ele, é muito mais difícil imitar uma figura que existe do que criar uma personagem de raiz. O "seu" Cavaco Silva, por exemplo, deu muito trabalho a construir. Manuel é um espectador dos programas de sátira política norte-americanos. E admite que até lhe servem de inspiração. Mas sobre as mensagens políticas que transmitem não sabe até que ponto "contribuíram para a vitória de Trump". Talvez tenham acabado por promovê-lo. "Na campanha, tentaram que a comédia funcionasse como uma arma anti-Trump e acabou por funcionar ao contrário", afirma.
Maria João Cruz é a coordenadora do projecto DDT e lidera uma equipa de oito guionistas. A política está a ganhar cada vez mais espaço no programa. Explica que "o importante é pôr as pessoas a rir das verdades", até porque "cabe também aos comediantes dizer aquilo que ninguém tem coragem de dizer". Ana Magalhães Ribeiro, outra guionista do programa, acrescenta que depois da gargalhada tem de haver um momento de reflexão. "Uma coisa que nós [equipa de guionistas] debatemos muito é: OK, isto tem piada, mas o que é que estamos a criticar? Tem de se tentar passar alguma mensagem", defende. Maria João Cruz sublinha que, no DDT, "politicamente levam todos por tabela. Não há partidos bons, nem maus." Para ela, a comédia tem o papel de oposição, mas geralmente "é uma oposição até à oposição". O que é criticado são as "acções". No fundo, o que pretendem ser é "o grilo falante do público", mas "sem a prepotência de que somos os arautos da verdade. Isso é que não pode ser. Acima de tudo, isto tem de ter graça".
Por estes dias, a actualidade política nacional dá pouco "sumo" ao programa. "O que é terrível. Quanto melhor está o país, pior está o nosso trabalho", diz a rir. Ainda assim, há sempre alguns temas que vão alimentando o alinhamento do programa, como "os escândalos da banca, o ridículo das comissões de inquérito" e os "offshore". "Eles [os políticos] são óptimos, fazem um grande trabalho por nós. São tão ridículos que basicamente só temos de exagerar mais um bocadinho". Lá fora, há muito mais para explorar, como "os avanços do fascismo na Europa" e, claro, a administração Trump.
O humor é uma arma?
Eduardo Madeira e Joana Pais de Brito também fazem parte do elenco do DDT. Acabaram de gravar um "sketch" sobre as cantinas públicas. No programa, o actor imita Pedro Passos Coelho, Donald Trump e António Costa. A actriz "encarna" Catarina Martins, Assunção Cristas, Ivanka Trump e a secretária de imprensa da Casa Branca, Kellyanne Conway. Eduardo Madeira diz que o trabalho dos actores na sátira política é fazer uma caricatura. "Quando vemos uma caricatura de papel, o nariz é compridíssimo, as orelhas são maiores, o cabelo é muito pequenino. Nós fazemos exactamente isso. Exageramos". Joana Pais de Brito acrescenta que "não é que a pessoa em si seja aquilo. Tem de se saturar nalgumas áreas, como os filtros do Instagram". E, "quando se mexe em personagens políticas, o riso também é um pouco nervoso. É a desconstrução total daquela pessoa, que é intocável e que tem poder."
A sátira é, afinal de contas, uma válvula de escape em tempos conturbados ou pode ser também uma forma de fazer política? Os actores concordam que a comédia não serve apenas para rir. Eduardo defende que é também uma arma. "O facto de expormos alguns tiques, algumas fraquezas ou discursos frágeis ou completamente idiotas de alguns políticos é precisamente uma forma de intervir, de dizer: cuidado! Este tipo é assim!"
Ricardo Araújo Pereira não concorda. Para ele, "o papel dos comediantes é fazer rir" e não fazer oposição. Recordando o repto de Michael Moore, na véspera da tomada de posse de Trump, considera: "Acho esquisito que a motivação de um humorista seja derrubar presidentes." Até porque "seria estranho que o povo, democraticamente, elegesse um Presidente, e depois um grupo de humoristas conseguisse derrubá-lo. Não é bem assim que a democracia funciona". Para o humorista, existe um "mito" em torno do "poder do humor". De facto, se havia dúvidas a respeito disso, "elas ficaram desfeitas nesta eleição: o candidato mais violentamente satirizado de sempre ganhou", diz. E recorda que já havia antecedentes. "George W. Bush, impiedosamente escarnecido pela esmagadora maioria dos comediantes, tinha sido reeleito com mais 12 milhões de votos do que os que tinha obtido na primeira eleição."
Numa entrevista à revista Rolling Stone, em 2011, Jon Stewart, que durante anos apresentou o programa The Daily Show no canal Comedy Central, sublinhou que o poder do humor é muitas vezes sobrevalorizado. "[A sátira] pode ser forte, aguçada e causar vergonha mas, no fundo, é impotente e ineficaz." Para o comediante, em grande medida ela é "uma catarse e uma válvula de escape". E, sublinhou, "essa é a diferença entre ser um revolucionário e um humorista".
A estação até aumentou os preços da publicidade no programa em Janeiro. E, de acordo com o Standart Media Index, que mede os gastos das agências de publicidade, em média um "spot" de 30 segundos custa agora mais 86% do que há um ano. A revista especializada Adweek estima que as receitas de publicidade no programa tenham subido quase 10% só no primeiro mês do ano.
Geoffrey Baym, director e professor do departamento de Estudos de Media e Produção da Universidade norte-americana de Temple, em Filadélfia, considera que o 11 de Setembro e a invasão do Iraque marcaram o início de uma nova era na sátira política nos Estados Unidos. "O jornalismo não estava a funcionar como uma crítica formal ao governo do Presidente George W. Bush. Foi então que Jon Stewart e Stephen Colbert [humoristas e apresentadores de programas de televisão] se tornaram vozes importantes no cenário político americano", disse à BBC Mundo este antigo produtor de informação televisiva. Para o académico, "nos regimes políticos autoritários, a comédia e a sátira em particular são mais eficazes do que os ataques explícitos ao poder político". Isto porque "enquanto os adversários políticos podem ser diminuídos, atacados e até presos, as pessoas do mundo do entretenimento e os comediantes são mais imunes à crítica". E há outro ponto a favor. "A comédia tem a capacidade de cruzar fronteiras e apelar a uma audiência maior e mais variada do que muitos meios de informação."
O "fenómeno Trump" também cruzou fronteiras e inspirou humoristas um pouco por todo o mundo. Foram vários os vídeos que se tornaram virais nas redes sociais que, pegando no slogan da campanha do milionário "America first", reclamavam que os seus países deveriam estar posicionados logo a seguir. A paródia começou na Holanda, mas rapidamente alastrou a outros países, entre eles Portugal.
"Seria estranho que o povo,democraticamente, elegesse um Presidente e depois um grupo de humoristas conseguisse derrubá-lo. Não é bem assim que a democracia funciona." Ricardo Araújo Pereira
Humorista
Humorista
O humorista Ricardo Araújo Pereira refere que a sátira política "sempre teve um apelo bastante grande". Afinal, "a ideia de podermos rir dos nossos dirigentes é atraente" e "a personalidade de Trump talvez contribua para intensificar isso". Mas alerta para o perigo de "as características, digamos, folclóricas de Trump", que "são muito apetitosas para a comédia", poderem "desviar a atenção de outros assuntos mais importantes". E exemplifica: "Que Trump acuse o seu antecessor de o ter espiado é, obviamente, escandaloso; mas o facto de estar a reverter todas as políticas que tentavam regulamentar as instituições financeiras, para evitar uma repetição da crise de 2008, pode ter mais impacto na nossa vida." Quanto ao fenómeno dos recordes de audiência dos programas de sátira política nos Estados Unidos, Ricardo Araújo Pereira sublinha que é preciso não esquecer que há vários factores que contribuem para isso. Um deles é "o facto de atraírem espectadores que já pensam como os autores do programa".
O Grande Ditador
Ao longo dos séculos, fazer pouco dos poderosos funcionou como uma válvula de escape. Que papel tinham os bobos da corte na Idade Média? Divertir o rei e quem o rodeava. Mas também apontar o dedo aos podres da sociedade. Eram os "palhaços de serviço", os únicos que podiam criticar, através da sátira, sem correr risco de vida. Já no século XX houve comediantes que sentiram na pele a fúria dos ditadores, em regimes autoritários. Uns foram ameaçados de morte, outros perderam mesmo a vida e outros viram os seus programas televisivos ou peças de teatro cancelados.
Charlie Chaplin foi um dos artistas que sentiram a pressão. A 15 de Outubro de 1940, em plena II Guerra Mundial, estreou o filme "O Grande Ditador" em Nova Iorque. Três anos antes, o cineasta tinha iniciado a produção daquela que seria a sua primeira película inteiramente falada e sonorizada, ainda sem imaginar o cenário de horror que se vivia na Europa. O filme era uma sátira a Adolf Hitler, mas também ao fascismo e a Mussolini. Ficou na História a cena em que Hynkel, o ditador interpretado por Chaplin, brinca com um balão em forma de globo terrestre. Uma alegoria às ambições do verdadeiro ditador, Adolf Hitler, que a partir da Alemanha pretendia dominar o mundo. Chaplin recebeu ameaças durante a rodagem e vários executivos da indústria cinematográfica tentaram convencê-lo a desistir do projecto. Valeu-lhe a intervenção do Presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, que o encorajou a prosseguir. O filme viria a tornar-se no maior sucesso de bilheteira do cineasta. Na sua autobiografia, Chaplin revela que se tivesse tido conhecimento da dimensão real dos horrores que aconteceram nos campos de concentração nazis quando estava a rodar o filme, não o teria conseguido fazer. Hitler não permitiu que "O Grande Ditador" fosse exibido na Alemanha, nem nos países que estavam sob o seu controlo. Em Espanha, a película também foi banida até à morte de Franco, em 1975.
Comédia à portuguesa
Nos bastidores do programa Donos Disto Tudo (DDT) preparam-se os últimos pormenores técnicos para começar a gravar. Os actores já estão a postos no "set". Enquanto se ajustam os planos das câmaras, a iluminação e o som, vão ensaiando o texto. O tema do "sketch" é a vinda do Papa a Portugal a 13 de Maio, no centenário das aparições. Manuel Marques "encarna" o Sumo Pontífice. É ele também que dá vida a Cavaco Silva, José Sócrates, Mário Centeno e Jerónimo de Sousa no programa humorístico, que passa aos sábados à noite na RTP1. O actor explica que, para ele, é muito mais difícil imitar uma figura que existe do que criar uma personagem de raiz. O "seu" Cavaco Silva, por exemplo, deu muito trabalho a construir. Manuel é um espectador dos programas de sátira política norte-americanos. E admite que até lhe servem de inspiração. Mas sobre as mensagens políticas que transmitem não sabe até que ponto "contribuíram para a vitória de Trump". Talvez tenham acabado por promovê-lo. "Na campanha, tentaram que a comédia funcionasse como uma arma anti-Trump e acabou por funcionar ao contrário", afirma.
"Na campanha [eleitoral] dos EUA, tentaram que a comédia funcionasse como uma arma anti-Trump e acabou por funcionar ao contrário." Manuel Marques
Humorista
Humorista
Maria João Cruz é a coordenadora do projecto DDT e lidera uma equipa de oito guionistas. A política está a ganhar cada vez mais espaço no programa. Explica que "o importante é pôr as pessoas a rir das verdades", até porque "cabe também aos comediantes dizer aquilo que ninguém tem coragem de dizer". Ana Magalhães Ribeiro, outra guionista do programa, acrescenta que depois da gargalhada tem de haver um momento de reflexão. "Uma coisa que nós [equipa de guionistas] debatemos muito é: OK, isto tem piada, mas o que é que estamos a criticar? Tem de se tentar passar alguma mensagem", defende. Maria João Cruz sublinha que, no DDT, "politicamente levam todos por tabela. Não há partidos bons, nem maus." Para ela, a comédia tem o papel de oposição, mas geralmente "é uma oposição até à oposição". O que é criticado são as "acções". No fundo, o que pretendem ser é "o grilo falante do público", mas "sem a prepotência de que somos os arautos da verdade. Isso é que não pode ser. Acima de tudo, isto tem de ter graça".
Por estes dias, a actualidade política nacional dá pouco "sumo" ao programa. "O que é terrível. Quanto melhor está o país, pior está o nosso trabalho", diz a rir. Ainda assim, há sempre alguns temas que vão alimentando o alinhamento do programa, como "os escândalos da banca, o ridículo das comissões de inquérito" e os "offshore". "Eles [os políticos] são óptimos, fazem um grande trabalho por nós. São tão ridículos que basicamente só temos de exagerar mais um bocadinho". Lá fora, há muito mais para explorar, como "os avanços do fascismo na Europa" e, claro, a administração Trump.
O humor é uma arma?
Eduardo Madeira e Joana Pais de Brito também fazem parte do elenco do DDT. Acabaram de gravar um "sketch" sobre as cantinas públicas. No programa, o actor imita Pedro Passos Coelho, Donald Trump e António Costa. A actriz "encarna" Catarina Martins, Assunção Cristas, Ivanka Trump e a secretária de imprensa da Casa Branca, Kellyanne Conway. Eduardo Madeira diz que o trabalho dos actores na sátira política é fazer uma caricatura. "Quando vemos uma caricatura de papel, o nariz é compridíssimo, as orelhas são maiores, o cabelo é muito pequenino. Nós fazemos exactamente isso. Exageramos". Joana Pais de Brito acrescenta que "não é que a pessoa em si seja aquilo. Tem de se saturar nalgumas áreas, como os filtros do Instagram". E, "quando se mexe em personagens políticas, o riso também é um pouco nervoso. É a desconstrução total daquela pessoa, que é intocável e que tem poder."
A sátira é, afinal de contas, uma válvula de escape em tempos conturbados ou pode ser também uma forma de fazer política? Os actores concordam que a comédia não serve apenas para rir. Eduardo defende que é também uma arma. "O facto de expormos alguns tiques, algumas fraquezas ou discursos frágeis ou completamente idiotas de alguns políticos é precisamente uma forma de intervir, de dizer: cuidado! Este tipo é assim!"
Ricardo Araújo Pereira não concorda. Para ele, "o papel dos comediantes é fazer rir" e não fazer oposição. Recordando o repto de Michael Moore, na véspera da tomada de posse de Trump, considera: "Acho esquisito que a motivação de um humorista seja derrubar presidentes." Até porque "seria estranho que o povo, democraticamente, elegesse um Presidente, e depois um grupo de humoristas conseguisse derrubá-lo. Não é bem assim que a democracia funciona". Para o humorista, existe um "mito" em torno do "poder do humor". De facto, se havia dúvidas a respeito disso, "elas ficaram desfeitas nesta eleição: o candidato mais violentamente satirizado de sempre ganhou", diz. E recorda que já havia antecedentes. "George W. Bush, impiedosamente escarnecido pela esmagadora maioria dos comediantes, tinha sido reeleito com mais 12 milhões de votos do que os que tinha obtido na primeira eleição."
Numa entrevista à revista Rolling Stone, em 2011, Jon Stewart, que durante anos apresentou o programa The Daily Show no canal Comedy Central, sublinhou que o poder do humor é muitas vezes sobrevalorizado. "[A sátira] pode ser forte, aguçada e causar vergonha mas, no fundo, é impotente e ineficaz." Para o comediante, em grande medida ela é "uma catarse e uma válvula de escape". E, sublinhou, "essa é a diferença entre ser um revolucionário e um humorista".