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“Publish or perish”, a saga dos investigadores

O número de artigos científicos publicados é uma métrica corrente na avaliação de cientistas, com peso nos financiamentos atribuídos a investigadores e instituições e na progressão da carreira. Mas de obrigação parece ter passado a obsessão, com consequências que vão do modo como é feita a ciência à prática de atos de ética duvidosa.
Susana Torrão 15 de Dezembro de 2023 às 14:45

No fim de novembro foram divulgados os resultados da última edição do Concurso de Estímulo ao Ensino Científico da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Tal como noutros concursos, o número de publicações científicas de cada candidato foi um dos aspetos avaliados. Mas o que começou como mais uma métrica ganhou um peso que está a condicionar várias fases da investigação. "Publish or Perish" é o mote pelo qual se guiam investigadores e que tem gerado preocupação no meio científico.

 

"Desde há 20 anos a atividade científica está crescentemente associada a uma lógica de métricas de avaliação quantitativas, ao nível individual e institucional. Se a ideia da avaliação tem inegáveis méritos, a forma como depois é operacionalizada no sistema científico é questionável", refere João Mourato, investigador e docente no Instituto de Ciências Sociais (ICS) com uma carreira ligada ao ordenamento do território e às políticas públicas.

 

A publicação de artigos científicos é "uma peça fundamental da função do investigador e do docente" e deve ser foco de avaliação, mas o modelo atual carece de revisão urgente, defende o investigador. "A análise quantitativa, os ‘rankings’ e indicadores de ‘performance’ individual assente no número de citações geram leituras potencialmente distorcidas da evolução e impacto da atividade científica. Nunca se publicou tanto. Mas em que é que tal se traduz não é, de todo, líquido".

 

João Mourato dá o exemplo dos manuais. "Em certas áreas, estamos cada vez mais pobres de manuais escolares ao nível do ensino superior. Contudo, o investimento de tempo e esforço na edição de um manual, que se traduz ao final numa única linha curricular, facilmente é preterido em favor de artigos"

 

Por uma questão de sobrevivência, os cientistas acabam por concentrar boa parte do tempo na escrita de artigos, apostando numa carreira crescentemente especializada em que à investigação se segue a escrita, seguida de mais investigação e escrita, proposta de projeto, avaliação e regresso à investigação, num processo circular. "A publicação de artigos parece, nalguns contextos, que se tornou um fim em si mesmo. Publicar artigos é um papel da atividade científica mas, a meu ver, não é o único. Urge debater a forma como entendemos o impacto e capacidade de transferência de conhecimento científico", diz João Mourato.



"A publicação de artigos parece que se tornou um fim em si mesmo", refere João Mourato, investigador e docente no Instituto de Ciências Sociais (ICS), com uma carreira ligada ao ordenamento do território e às políticas públicas. 


Este é um fenómeno com consequências ao nível da própria investigação como apontavam, já em 2014, Seema Rawat e Sanjay Meena, dois investigadores de Nova Deli, num artigo publicado na National Library of Medicine. A preocupação em atingir um elevado número de publicações leva a que uma única investigação seja "fatiada" ao máximo, de modo a que dela se extraia o maior número de artigos possível.

 

Além disso, e uma vez que os estudos de replicação não são tão valorizados, acaba por haver um predomínio de investigações ‘one shot’, em que determinados estudos ou experiências não voltam a ser repetidos. A isto junta-se a tendência na escolha de temas com mais probabilidade de serem aceites pelas revistas científicas ou noticiados pelos media, o que acaba por limitar as áreas e temas de investigação. "O próprio debate académico vai ficando mais homogéneo", admite João Mourato.

 

O negócio das editoras

 

A necessidade de publicar – preferencialmente em forma de "open access" – tem alimentado o crescimento do setor editorial científico. De acordo com os cálculos de John Ioannidis, investigador da Universidade de Stanford e ele próprio um autor prolífico com uma média de 50 artigos anuais, em 2015 existiam cerca de uma dúzia de revistas científicas na área da biomédica que representavam 6% da produção de artigos. Hoje esse número cresceu para 55 títulos. Destes, metade pertence a um mesmo grupo editorial, o MDPI.

 

A garantia do acesso a artigos científicos de forma livre – condição obrigatória para aceder a financiamento por instituições como a Comissão Europeia – vem colocar questões relacionadas com os dinheiros públicos, já que para garantir o acesso livre, uma ampla maioria de revistas exige um pagamento inicial aos investigadores. E quando não há acesso livre é cobrado um pagamento às instituições para garantir o acesso aos seus investigadores, docentes e estudantes. "Estamos a falar de financiamento público que financia a investigação a ser capitalizado pelo setor privado", alerta João Mourato, para quem as grandes editoras mudaram o modelo de capitalização sem alterar o princípio fundamental: é a editora quem ganha.

 

O lado obscuro

 

Nos últimos anos tem havido um aumento de práticas pouco éticas associadas à publicação de artigos. Alguns autores, como José Manuel Lorenzo, da Universidade de Vigo, cujo caso foi revelado num artigo do El País, chegam aos 176 artigos publicados num ano. O equivalente a publicar um artigo dia sim, dia não. Para o conseguir, o próprio reconheceu que empresta o seu nome (como autor secundário) a artigos em cuja investigação não participou, de equipas que não conhece.

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