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O grande artista do futuro ainda será humano?

A máquina contra o homem ou o homem com a máquina? Este é o dilema que as indústrias criativas estão a enfrentar com a inteligência artificial generativa. No mundo das artes, a evolução tecnológica ainda está a ser vista com desconfiança. O caminho é incerto e levanta muitas questões. Qual o papel dos artistas no futuro? Serão meros programadores? Poderemos ver uma pintura de um humano e outra de um robô, lado a lado, num museu? Estas são perguntas ainda sem respostas.
Filipa Lino 08 de Julho de 2023 às 11:00

"Deus quer, o homem sonha, a obra nasce." A frase de Fernando Pessoa pode estar obsoleta. Com a nova vaga tecnológica da inteligência artificial (IA) generativa a entrar em força nas indústrias criativas, haverá muito pouco de "divino" ou de "sonho" nas obras geradas pelas máquinas. A grande questão que se coloca é se o homem vai continuar a ser um criador.

 

Há vários anos que Leonel Moura reflete sobre a relação da arte com a tecnologia. O artista conceptual é pioneiro na aplicação da robótica e da IA na arte. Trabalha há mais de 20 anos nesta área. "Quando faço esculturas ou pinturas, ponho os algoritmos a gerá-las. Faço trabalhos com base tecnológica e sobretudo com código", explica.

 

No fundo, o seu trabalho é "construir o robô de maneira a que seja autónomo, capaz de tomar decisões por si próprio". Por isso, nunca sabe bem qual vai ser o resultado final. "Eu não pinto. Eu faço os robôs que pintam. A minha centralidade como artista moveu-se", esclarece.

 

Assim sendo, estamos a falar de um artista ou de um programador? "Sou artista porque inscrevo-me na história de arte", responde. "A história de arte foi-se desenvolvendo de uma forma que conduziu a que seja possível fazer as coisas que faço". Leonel Moura assume-se como um artista das ideias. Não lhe interessa trabalhar manualmente as suas obras, nem usar as emoções.

 

Para o artista, esta evolução tecnológica produz obras de arte "muito mais imaginativas" porque a "imaginação humana é muito limitada". De facto, "os programas que geram imagens a partir de texto fazem coisas surpreendentes e muito mais interessantes do que as produzidas pela maioria dos artistas".



Leonel Moura é pioneiro na aplicação da robótica e da IA na arte. Há uma semana, inaugurou a exposição "O Fim da Arte, tal como a conhecemos?", na Cooperativa Árvore, onde mostra dois robôs realizados em colaboração com o INESC-TEC.


Há uma semana, inaugurou uma exposição na Cooperativa Árvore, no Porto, intitulada "O Fim da Arte, tal como a conhecemos?". A pergunta é retórica. Para Leonel Moura, a resposta é claramente positiva. A arte está a mudar para o digital e não vale a pena tentar "parar o vento com as mãos".

 

Como a IA generativa é "criativa", terá cada vez mais impacto no setor. Trata-se de "uma mudança radical" que ameaça as artes em geral. "Mas a atitude típica é de desvalorizar e dizer: ‘isto é mais uma moda que vai passar’. Não é!", avisa.

 

A exposição no Porto, patente até 22 de julho, mostra fases diferentes do seu percurso artístico. Na parede da sala estão três das primeiras pinturas feitas em 2004 com robôs autónomos. Leonel Moura criou um conjunto de pequenas máquinas (inspiradas no comportamento das formigas) que, trabalhando em coletivo, conseguem produzir pinturas únicas sem intervenção humana direta.

 

Numa arena, no centro do espaço expositivo, estão dois robôs realizados em colaboração com o INESC-TEC, que são uma versão mais sofisticada dos primeiros, e que através de uma câmara de vídeo podem transmitir a evolução da pintura na internet.

 

Leonel Moura não foi apanhado de surpresa por este salto tecnológico da IA generativa. Era expectável que chegássemos aqui, diz. Há 20 anos, escreveu um manifesto onde defendia que as máquinas podem fazer arte e que o grande artista do futuro não será humano. "Isso para mim já era evidente naquela altura", refere. A profecia demorou um pouco mais do que esperava a tornar-se realidade. Agora, considera que a muito breve prazo poderemos ter robôs a representar países em eventos culturais como a Bienal de Veneza.

 

A ligação entre cientistas e artistas

 

Há séculos que se debate o que é a arte e, com a inteligência artificial, essa discussão volta a incendiar-se. "A tecnologia não me parece uma coisa assustadora", diz Emília Ferreira, diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC). Na verdade, "os artistas sempre usaram a técnica, a tecnologia e a ciência em seu benefício".

 

Olhando para a história, "os momentos em que houve um avanço mais rápido – tanto nas artes como nas ciências – foram justamente quando artistas e cientistas trabalharam mais proximamente". O expoente máximo é o período do Renascimento, em que "nas academias os filósofos, matemáticos, físicos, astrónomos, pintores, escultores e poetas discutiam os temas em conjunto".

 

Esta partilha de saberes promoveu um salto civilizacional e cultural. "O nosso avanço será sempre maior quanto mais conseguimos trocar experiências. Caso contrário, ficaremos sempre a olhar cada um para o seu pequeno mundo de conhecimento", defende.



"A tecnologia não me parece uma coisa assustadora", diz Emília Ferreira, diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC). Na verdade, "os artistas sempre usaram a técnica, a tecnologia e a ciência em seu benefício". Admite, por isso, que no futuro o museu tenha uma sala dedicada à arte tecnológica. 


É por isso que este é "um momento altamente fascinante". Tal como aconteceu em outras alturas, "existem artistas que se fascinam pelas novas tecnologias, que preferem trabalhar com o computador e que desenham com uma placa gráfica, e outros a quem a tecnologia não interessa de um ponto de vista tão absoluto". Emília Ferreira está convencida de que "haverá sempre artistas a fazer trabalhos com as mãos." Todas as formas de arte "são válidas" e todas têm público.

 

A sua experiência no MNAC mostra que as exposições dos artistas selecionados pelo júri dos Prémios Sonae Media Art – cujo objetivo é incentivar a criatividade e a inovação premiando jovens criadores – "foram sempre muito visitadas e não apenas por um público jovem".

 

De um modo geral, "os consumidores da cultura visual são pessoas curiosas". É certo que "algumas são mais abertas à novidade do que outras, mas creio que haverá espaço para essas novidades" tecnológicas.

 

Não é essa a experiência de Leonel Moura. "Ao contrário do que as pessoas pensam, o mundo da arte é extremamente conservador. Não gosta nada de coisas inovadoras". Em Portugal, sente que não tem as portas abertas para mostrar a sua arte.

 

É sobretudo no estrangeiro que tem tido oportunidade para expor e vender as suas obras. Neste momento, está a preparar duas exposições – uma num centro de arte em França e outra num novo museu dedicado à arte tecnológica – o Diriyah Art Futures – que vai ser inaugurado no outono, na Arábia Saudita. "Além dos robôs a pintar, vou ter esculturas com quase três metros de altura, que foram criadas por um algoritmo e depois impressas em 3D na Movecho, uma empresa de Viseu, com a qual tenho colaborado", revela.

 

Talvez essa abertura à "novidade" não chegue para já a Portugal, mas no futuro a diretora do MNAC, Emília Ferreira, consegue imaginar uma sala no museu dedicada apenas a obras digitais. "A IA, como qualquer outro instrumento, será seguramente usada pelos artistas das formas mais criativas e diversas". Afinal de contas, "faz parte da nossa natureza humana fascinarmo-nos pelo novo". 



Adelaide Ginga pediu uma bolsa à Gulbenkian, quando era curadora do Museu Nacional de Arte Contemporânea, para fazer uma formação sobre arte criada em suporte digital. Percebeu que estavam a surgir questões novas para as quais não estava preparada. Agora é diretora do Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, que será inaugurado em 2024.


No entanto, o "novo" coloca-nos sempre perguntas e leva-nos a procurar respostas. Foi isso que aconteceu com Adelaide Ginga, que, enquanto curadora, sentiu que precisava de mais informação para lidar com questões relacionadas com a apresentação de obras de arte digital em museus.

 

"Comecei a perceber que aquelas obras levantavam questões para as quais eu não estava familiarizada, tanto na relação com os públicos como no que diz respeito aos processos de exposição, de conservação, etc.", conta. Esse desconhecimento incomodou-a. Precisava de se atualizar.

 

Em 2019, era curadora do Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC) e solicitou uma bolsa à Gulbenkian para fazer uma formação profissional em várias instituições internacionais na área do "born digital art" (arte criada em suporte digital). Passou por museus e centros de arte em países como a Holanda, Inglaterra, Alemanha e Suíça, onde fez contactos para perceber como se estavam a atualizar e a lidar com o digital.

 

Adelaide Ginga esclarece que o recurso ao digital por parte dos artistas não é propriamente uma novidade. Dá como exemplo o artista plástico Pedro Calapez, que trabalha em suporte físico mas que, "no seu processo de construção das obras, recorre muitas vezes a maquetes digitais para trabalhar os volumes, a cor, etc." Como ele, há muitos outros.

 

Toda essa parte digital já está "entranhada" na criação artística. O que vem pela frente para o setor com a IA são outras questões, nomeadamente as relativas à autoria das obras.

 

"Neste momento, um artista pode fazer uma encomenda de uma obra à IA e querer assiná-la sozinho porque a ideia conceptual é dele. Mas se outra pessoa tiver a mesma ideia e encomendar a mesma obra à IA, as duas obras serão praticamente iguais. Isso levanta questões preocupantes".



A escultura de Leonel Moura "Arabia Branco", com impressão em 3D, estará exposta no museu Diriyah Art Futures, na Arábia Saudita, cuja inauguração está marcada para este outono.



Por outro lado, a eficiência e a rapidez de execução da IA "não garantem um uso exclusivo, como acontece quando existe um percurso profissional, com artistas que estão a articular connosco, que sabem que estão a fazer aquele trabalho para nós. A IA não nos garante a ética, a responsabilidade profissional e o bom senso".

 

Também fica a faltar a relação entre o curador e o artista, que muitas vezes é intuitiva. "O curador percebe as preocupações do artista. Há coisas que ele nem diz mas que se percebem na relação" que se estabelece entre os dois. "É uma relação de compromisso e eu não sei como é que se estabelece um compromisso com a IA".

 

Neste momento, Adelaide Ginga é diretora do Museu de Arte Contemporânea Armando Martins (MACAM), que ficará instalado no Palácio Condes da Ribeira Grande (antigo Liceu Rainha D. Amélia), em Lisboa, e cuja inauguração está prevista para o primeiro semestre de 2024.

 

Questionada sobre se, de futuro, vamos ter nos museus obras de artistas humanos ao lado de obras produzidas por máquinas, responde que "há instituições que gostam de ser pioneiras, de trazer a diferença e até de surpreender ou chocar ao introduzir um registo que está fora dos padrões". Atualmente, isso parece-lhe "absurdo." Contudo, não afasta a hipótese de que "possam acontecer coisas que nos surpreendam".

 

O que mais a preocupa em todo este fenómeno é sobretudo a questão social. "Há um deslumbramento de quem tem menos acesso à tecnologia, de achar que isto é extraordinário. Quem tem mais acesso tem outros filtros e percebe que a máquina não nos está a dar nada de extraordinário – na verdade, está a iludir-nos".

 

Recentemente, a diretora do MACAM fez um teste no ChatGPT. Pediu uma biografia de um artista que estava a elaborar para o site do museu. A sua equipa conhece bem o percurso do artista em questão e quis comparar. "A biografia estava cheia de erros" e, quando confrontado com esses erros, "o ChatGPT pediu desculpa".

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