Notícia
Mísia: Sou metade Almodôvar e metade Manoel de Oliveira
Mísia andou pelo mundo entre a Amália Rodrigues e a nova geração de fadistas. “Tinha um grande êxito no estrangeiro e, aqui, uma grande invisibilidade”, diz a fadista que lançou “Do Primeiro Fado ao Último Tango”, colectânea que será apresentada no Teatro da Trindade a 2 de Dezembro.
Mísia nasceu no Porto. A casa da mãe e da avó era uma casa espanhola. Elas eram mulheres-Almodôvar. A avó Lolita fazia dança burlesca, a mãe era bailarina. A casa do pai era uma casa portuguesa de alta burguesia. Na casa espanhola, ela vestia-se de cores e chapéus. Na casa portuguesa, as roupas eram outras. "Aprendi, desde pequena, a ser duas pessoas". Mísia é metade Almodôvar e metade Manoel de Oliveira. Na adolescência, ia com a mãe a casas de fado. Mas também ouvia música clássica espanhola, músicas do mundo, boleros, Édith Piaf. Foi neste caldo que Mísia cresceu e foi este o caldo que levou para o seu fado, olhado com estranheza em Portugal. Os puristas desconfiavam. Outros, como Maria da Fé, diziam: "A Mísia é como nós, só que se veste de forma diferente." Algumas das suas músicas estão agora na colectânea "Do Primeiro Fado ao Último Tango", que vai ser apresentado no Teatro da Trindade dia 2 de Dezembro, num espectáculo que celebra 25 anos de carreira discográfica.
Eu sou "forinha", as minhas ideias, às vezes, são "forinhas". Lembro-me que o álbum "Mísia" (1991) foi um verdadeiro braço-de-ferro entre mim e o produtor de então, mas consegui colocar no disco temas como o "Samba Em Prelúdio" e o "Porto Sentido". Eu não tinha intenção de criar novo fado, estava apenas a fazer as coisas à minha maneira. Só mais tarde é que percebi o que tinha feito. A colectânea "Do Primeiro Fado ao Último Tango" contém 25 anos de discos e foi muito difícil escolher 40 temas, eu privilegiei a parte que talvez me defina mais e que é a colaboração com os poetas e pessoas de vários universos, como o Iggy Pop ou The Legendary Tigerman e também com cantautores como Amélia Muge. Foi bom olhar para trás. Penso que muitas das pessoas que agora cantam fado seguiram linhas daquilo que eu fiz, embora nenhuma o reconheça. Mas há uma coisa engraçada. Durante muito tempo, os puristas do fado ignoraram-me mas, quando chegaram os novos fadistas, começaram a dizer que eu era a "culpada" por ter aberto a porta a esta nova geração.
A Amália [Rodrigues] abriu as portas todas e eu, de certa maneira, mantive-as abertas. Acabo por estar entre a Amália e os novos fadistas e isso faz com que as pessoas não saibam em que gaveta me hão-de colocar. Fui a muitos sítios num tempo em que não havia internet nem televisão por cabo e, por isso, em Portugal, ninguém sabia o que é que eu andava a fazer, mas eu tirava um grande prazer do facto de estar a criar um público para um tipo de fado que não existia, e esse é o maior orgulho de um artista.
Há musicólogos que insistem em dizer que eu venho de fora do fado. Não é verdade porque, quando morava no Porto, eu ia cantar às casas de fado. Ia à Taverna São Jorge e ao Mal Cozinhado com a minha mãe. Ela tinha sido bailarina de música clássica espanhola. Ouvia autores como Manuel de Falla, Isaac Albéniz, Enrique Granados. Também ouvia músicas do mundo, boleros de Los Panchos, Édith Piaf. E ouvia fado, ouvia a Amália, o António dos Santos, a Maria Teresa de Noronha. Íamos a essas casas de fados onde a Beatriz da Conceição e o Jorge Barradas cantavam, e eu fui aprendendo. Não venho tão de fora como parece. O que acontece é que eu sou várias coisas e isso causa incómodo em algumas pessoas que acham que, se eu cantar com o Iggy Pop, já não sou fadista. Ora, as coisas somam-se, não se subtraem.
Nasci no Porto, os meus pais divorciaram-se quando eu tinha quatro anos, a minha mãe retomou a carreira de bailarina e chamou a minha avó para tomar conta de mim. Se alguma coisa eu tenho de bom é graças a Lolita Velez! Lo-li-ta. Ela fazia "burlesque" em Barcelona, cuidadinho! No Porto, ela era uma excentricidade. Tinha um papagaio, fumava. Era uma mulher inteligente, com rabo-de-cavalo, cabelo louro platinado, unhas compridas, vermelhas. Um escândalo!
Em casa da minha mãe e da minha avó, eu vestia-me com cores, um bocado aciganada talvez, à espanhola. Tínhamos aquelas arcas de artistas em casa e eu, mal chegava do colégio, vestia-me com roupas coloridas. Cada dia, inventava uma nova personagem, ora era uma senhora com um chapéu, ora era uma senhora com uma flor na cabeça. Mas não podia ir a casa do meu pai e da minha avó paterna, professora, com todas aquelas cores. Eles vestiam-me de outra maneira. Em casa do meu pai, era só gente da Foz, da alta burguesia. Era mesa posta, com os talheres para dentro, "bom proveito", "posso levantar da mesa?". Em casa da minha mãe, eram pratos no meio da mesa, talheres em cima, "tortilla", "patatas", "pimientos de padrón". "Venga! Comer!".
Aprendi, desde pequena, a ser duas pessoas. Fui sendo duas e depois vieram mais, e vieram em catadupa, sou plural, mas todos nós o somos. Sou muito camaleónica, adapto-me bem a ambientes diferentes. Cresci neste caldo cultural muito rico. Mas não foi fácil, porque ser diferente não é fácil. Fui interna para o colégio aos seis anos e as outras meninas, já naquela altura, diziam: "Olha que peneirenta". E eu não era peneirenta, eu era diferente. Às vezes, as pessoas conhecem-me e dizem: "Mas és tão diferente do que nós pensávamos". A Maria da Fé tem uma frase muito engraçada: "A Mísia é como nós, só que se veste de forma diferente".
A minha avó começou a envelhecer e, a dada altura, disse: "eu quero morrer na minha cidade". Como a minha avó era o meu anjo afectivo, pedi ao meu pai que me desse a emancipação e fui para Barcelona. Iria estudar Antropologia - a Margaret Mead e o Claude Lévi-Strauss eram os meus ídolos. Não cheguei a tirar o curso, mas um dia ainda hei-de fazê-lo. Como a minha avó era conhecida no meio, eu comecei como bailarina numa revista em Barcelona, fiquei por lá, depois fui para Madrid, cantei em sítios da Movida, estive num programa de televisão fantástico chamado "Por la mañana", cantava cinco ou seis temas todos os dias, era uma grande loucura.
Sentia-me mais portuguesa quando estava fora de Portugal. Na adolescência, questionava: "Afinal, eu sou portuguesa ou sou espanhola?" A verdade é que o meu pai não foi nem muito presente nem muito carinhoso, e isso fez com que eu me aproximasse mais do mundo da minha mãe e da minha avó, e aquele era um mundo espanhol, um mundo mais acolhedor e meigo para mim. Só quando saí do País é que me senti mais portuguesa. A dada altura, pensei: "Mas eu não preciso de escolher!" Sou metade Almodôvar e metade Manoel de Oliveira, tenho a parte almodovariana, de castanholas, leveza, uma certa frivolidade e sentido de humor, e depois tenho a parte da vida e da morte portuguesa, sou as duas coisas, fiquei com tudo. Nos meus concertos, as pessoas choram e riem às gargalhadas. Eu não preparo, acontece assim.
Eu não podia cantar fado longe dos autores, dos músicos e das pessoas que criam o fado, então decidi regressar a Portugal. A minha intenção era ter um reportório próprio, queria cantar um fado com letras contemporâneas ou intemporais. E, depois, aparecia com uma bruta minissaia, de argolas enormes e luvas pretas. As pessoas que gostavam de fado tradicional não gostavam daquele "horror". As pessoas que não gostavam de fado achavam que eu devia cantar outra coisa. Tinha um grande êxito no estrangeiro e, aqui, uma grande invisibilidade. Andava a cantar na Filarmónica de Berlim, no Festival de Avignon ou no Town Hall, em Nova Iorque, e em Portugal ninguém me ligava. Para as editoras, eu não era um valor seguro.
Vivi sempre em Portugal e cansei-me de ouvir dizer que a Mísia morava em Paris. Eu morava em Queijas! Como é que os portugueses podiam pensar que eu conseguia colaborar com os poetas e com os músicos portugueses morando longe daqui? Até que, um dia, fui mesmo morar em Paris, fiquei lá quatro anos e meio, foi bom afastar-me um bocadinho de algumas coisas que me magoavam naquela altura. Hoje moro na rua de Santa Catarina, no mesmo sítio onde vivia antes de ir para Paris.
O meu dia-a-dia é muito calmo, gosto muito de estar com os meus animais. Tenho uma chihuahua cor de chocolate que se chama Miss Bonsai e tenho dois gatos, o Artur e Kioko, tinha um gato que se chamava Vírgula Manuel. E tenho amigos que são verdadeiros tesouros, que me adoptaram como se eu fosse filha deles. Tenho uma vida muito tranquila em Portugal, mas ainda hoje continuam a perguntar-me se moro em Paris!
Eu sou "forinha", as minhas ideias, às vezes, são "forinhas". Lembro-me que o álbum "Mísia" (1991) foi um verdadeiro braço-de-ferro entre mim e o produtor de então, mas consegui colocar no disco temas como o "Samba Em Prelúdio" e o "Porto Sentido". Eu não tinha intenção de criar novo fado, estava apenas a fazer as coisas à minha maneira. Só mais tarde é que percebi o que tinha feito. A colectânea "Do Primeiro Fado ao Último Tango" contém 25 anos de discos e foi muito difícil escolher 40 temas, eu privilegiei a parte que talvez me defina mais e que é a colaboração com os poetas e pessoas de vários universos, como o Iggy Pop ou The Legendary Tigerman e também com cantautores como Amélia Muge. Foi bom olhar para trás. Penso que muitas das pessoas que agora cantam fado seguiram linhas daquilo que eu fiz, embora nenhuma o reconheça. Mas há uma coisa engraçada. Durante muito tempo, os puristas do fado ignoraram-me mas, quando chegaram os novos fadistas, começaram a dizer que eu era a "culpada" por ter aberto a porta a esta nova geração.
A Amália [Rodrigues] abriu as portas todas e eu, de certa maneira, mantive-as abertas. Acabo por estar entre a Amália e os novos fadistas e isso faz com que as pessoas não saibam em que gaveta me hão-de colocar. Fui a muitos sítios num tempo em que não havia internet nem televisão por cabo e, por isso, em Portugal, ninguém sabia o que é que eu andava a fazer, mas eu tirava um grande prazer do facto de estar a criar um público para um tipo de fado que não existia, e esse é o maior orgulho de um artista.
Há musicólogos que insistem em dizer que eu venho de fora do fado. Não é verdade porque, quando morava no Porto, eu ia cantar às casas de fado. Ia à Taverna São Jorge e ao Mal Cozinhado com a minha mãe. Ela tinha sido bailarina de música clássica espanhola. Ouvia autores como Manuel de Falla, Isaac Albéniz, Enrique Granados. Também ouvia músicas do mundo, boleros de Los Panchos, Édith Piaf. E ouvia fado, ouvia a Amália, o António dos Santos, a Maria Teresa de Noronha. Íamos a essas casas de fados onde a Beatriz da Conceição e o Jorge Barradas cantavam, e eu fui aprendendo. Não venho tão de fora como parece. O que acontece é que eu sou várias coisas e isso causa incómodo em algumas pessoas que acham que, se eu cantar com o Iggy Pop, já não sou fadista. Ora, as coisas somam-se, não se subtraem.
Em casa da minha mãe e da minha avó, eu vestia-me com cores, um bocado aciganada talvez, à espanhola. Tínhamos aquelas arcas de artistas em casa e eu, mal chegava do colégio, vestia-me com roupas coloridas. Cada dia, inventava uma nova personagem, ora era uma senhora com um chapéu, ora era uma senhora com uma flor na cabeça. Mas não podia ir a casa do meu pai e da minha avó paterna, professora, com todas aquelas cores. Eles vestiam-me de outra maneira. Em casa do meu pai, era só gente da Foz, da alta burguesia. Era mesa posta, com os talheres para dentro, "bom proveito", "posso levantar da mesa?". Em casa da minha mãe, eram pratos no meio da mesa, talheres em cima, "tortilla", "patatas", "pimientos de padrón". "Venga! Comer!".
Aprendi, desde pequena, a ser duas pessoas. Fui sendo duas e depois vieram mais, e vieram em catadupa, sou plural, mas todos nós o somos. Sou muito camaleónica, adapto-me bem a ambientes diferentes. Cresci neste caldo cultural muito rico. Mas não foi fácil, porque ser diferente não é fácil. Fui interna para o colégio aos seis anos e as outras meninas, já naquela altura, diziam: "Olha que peneirenta". E eu não era peneirenta, eu era diferente. Às vezes, as pessoas conhecem-me e dizem: "Mas és tão diferente do que nós pensávamos". A Maria da Fé tem uma frase muito engraçada: "A Mísia é como nós, só que se veste de forma diferente".
A minha avó começou a envelhecer e, a dada altura, disse: "eu quero morrer na minha cidade". Como a minha avó era o meu anjo afectivo, pedi ao meu pai que me desse a emancipação e fui para Barcelona. Iria estudar Antropologia - a Margaret Mead e o Claude Lévi-Strauss eram os meus ídolos. Não cheguei a tirar o curso, mas um dia ainda hei-de fazê-lo. Como a minha avó era conhecida no meio, eu comecei como bailarina numa revista em Barcelona, fiquei por lá, depois fui para Madrid, cantei em sítios da Movida, estive num programa de televisão fantástico chamado "Por la mañana", cantava cinco ou seis temas todos os dias, era uma grande loucura.
Sentia-me mais portuguesa quando estava fora de Portugal. Na adolescência, questionava: "Afinal, eu sou portuguesa ou sou espanhola?" A verdade é que o meu pai não foi nem muito presente nem muito carinhoso, e isso fez com que eu me aproximasse mais do mundo da minha mãe e da minha avó, e aquele era um mundo espanhol, um mundo mais acolhedor e meigo para mim. Só quando saí do País é que me senti mais portuguesa. A dada altura, pensei: "Mas eu não preciso de escolher!" Sou metade Almodôvar e metade Manoel de Oliveira, tenho a parte almodovariana, de castanholas, leveza, uma certa frivolidade e sentido de humor, e depois tenho a parte da vida e da morte portuguesa, sou as duas coisas, fiquei com tudo. Nos meus concertos, as pessoas choram e riem às gargalhadas. Eu não preparo, acontece assim.
Eu não podia cantar fado longe dos autores, dos músicos e das pessoas que criam o fado, então decidi regressar a Portugal. A minha intenção era ter um reportório próprio, queria cantar um fado com letras contemporâneas ou intemporais. E, depois, aparecia com uma bruta minissaia, de argolas enormes e luvas pretas. As pessoas que gostavam de fado tradicional não gostavam daquele "horror". As pessoas que não gostavam de fado achavam que eu devia cantar outra coisa. Tinha um grande êxito no estrangeiro e, aqui, uma grande invisibilidade. Andava a cantar na Filarmónica de Berlim, no Festival de Avignon ou no Town Hall, em Nova Iorque, e em Portugal ninguém me ligava. Para as editoras, eu não era um valor seguro.
Vivi sempre em Portugal e cansei-me de ouvir dizer que a Mísia morava em Paris. Eu morava em Queijas! Como é que os portugueses podiam pensar que eu conseguia colaborar com os poetas e com os músicos portugueses morando longe daqui? Até que, um dia, fui mesmo morar em Paris, fiquei lá quatro anos e meio, foi bom afastar-me um bocadinho de algumas coisas que me magoavam naquela altura. Hoje moro na rua de Santa Catarina, no mesmo sítio onde vivia antes de ir para Paris.
O meu dia-a-dia é muito calmo, gosto muito de estar com os meus animais. Tenho uma chihuahua cor de chocolate que se chama Miss Bonsai e tenho dois gatos, o Artur e Kioko, tinha um gato que se chamava Vírgula Manuel. E tenho amigos que são verdadeiros tesouros, que me adoptaram como se eu fosse filha deles. Tenho uma vida muito tranquila em Portugal, mas ainda hoje continuam a perguntar-me se moro em Paris!