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Mafalda Ribeiro e Cláudia Sampaio: “Nós somos o verdadeiro Kinder Surpresa”

Cláudia era a voz da Mafalda. Era ela quem lia as suas crónicas numa rádio de inspiração cristã. Emocionou-se com elas e quis levá-las mais longe. Um dia, chegou junto da autora e disse-lhe: “Esquece as tuas limitações. Se eu puder ajudar-te, o que gostarias realmente de fazer?” Cláudia fez a proposta e Mafalda respondeu que sim. Hoje, vão a escolas e a empresas falar sobre liderança, motivação e superação. A vida de Mafalda é feita disso mesmo.

Miguel Baltazar
15 de Dezembro de 2017 às 14:00
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Elas nunca sabem muito bem o que vai acontecer quando partem juntas. Nunca sabem como vai acabar uma conferência, uma palestra ou uma viagem. Elas, simplesmente, vão. Vão a empresas e vão a escolas falar sobre liderança, trabalho de equipa, motivação e superação. A vida de Mafalda é feita disso mesmo. A sua história é essa. Nasceu com osteogénese imperfeita, a chamada doença dos ossos de vidro, e a sua vida é, como diz, uma improbabilidade. 

Conheci a Mafalda num voo para Bruxelas. Ao seu lado estava Cláudia Sampaio. Preparavam-se para participar no evento "Matinés Pensantes", que reunia várias mulheres portuguesas. Mafalda iria contar a sua história. Cláudia tinha conhecido essa mesma história uma dúzia de anos antes na igreja cristã protestante Centro Cristão da Cidade (CCC) e aos microfones da rádio United Christian Broadcasters (UCB), onde lia as crónicas da autora no programa "Gotas no Charco". Emocionava-se com elas. Quis então conhecer melhor a pessoa daquelas palavras. Foi conhecendo, admirando-a e um dia desafiou-a: "Esquece as tuas limitações. Se eu puder ajudar-te, o que é que realmente gostarias de fazer?" Mafalda ripostou: "Mas tu não me conheces, nem sabes como é andar comigo." Por fim, disse: "O que eu gostava mesmo era de fazer palestras…"

Mafalda Ribeiro estudou Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social, foi técnica de Comunicação, escreve muito e revê-se como uma comunicadora profissional. Dá a cara pela sua marca pessoal "Sorrir sobre Rodas", trabalha com escolas, empresas e organizações. Cláudia Sampaio estudou Gestão, foi dirigente da IPSS Ajuda Cristã à Juventude (ACJ) e trabalha com Mafalda há três anos.

Conversámos em Outubro, o sol estava ainda bem forte, no CCC Café (Corações Com Coroa Café), em Lisboa. Uma conversa, sem filtros, sobre a história de um encontro.


A Cláudia é um bocadinho polvo, consegue pegar em mim, consegue pegar na cadeira, conduzir, maquilhar-me, esticar-me o cabelo, dar-me a mão quando estou a tremer…

 

Como se conheceram?

Mafalda – A Cláudia era alguém que eu via aos domingos, ela era "apenas" uma pessoa num determinado cenário. Frequentávamos a mesma igreja em Loures, que hoje é a Hillsong Portugal. Eu tinha passado por um processo muito próprio em relação à minha forma de viver o cristianismo. Cresci numa família altamente tradicionalista e católica. Tenho uma formação religiosa, a minha mãe era catequista e várias pessoas queriam que eu desse catequese aos miúdos. Isso funcionou para mim como um abalo de consciência. Pensei: não posso passar "isto" às crianças. Afinal, aquela não era a minha verdade no seu todo. A crença nunca esteve em causa, as dúvidas tinham mais que ver com aquilo que é, para mim, o lado dogmático da instituição Igreja Católica. Eu teria uns 18 anos, fiz uma espécie de introspecção e concluí: não quero continuar a viver no morno, é muito fácil habituarmo-nos a viver no morno. Um amigo meu costuma dizer: há pessoas que passam a vida inteira a empurrar a vida com a barriga. Eu também empurrava com a barriga. Um dia, cheguei a casa e disse: não quero mais isto para mim. Os meus pais pensaram que eu estava na crise da adolescência, que iria virar ateia ou agnóstica ou que iria aparecer gótica!

 

Isso não aconteceu…, mas não terá sido fácil.

Mafalda – Não foi nada fácil durante uns tempos. Quando cheguei à igreja em Loures, comecei a conhecer pessoas e notei que elas também queriam conhecer-me. A minha figura funciona como uma espécie de íman, as pessoas querem perceber o que é "isto". Mas a Cláudia era aquela figura que ficava lá ao fundo, ela não vinha ter comigo. Era como se estivesse à espera que a multidão se afastasse de mim. Durante alguns anos, trocámos olhares, sorrimos, vigiámo-nos à distância. Com a Cláudia, aprendi que há um tempo certo para tudo. E aquilo que hoje faço, falar às massas, a Cláudia consegue fazê­-lo muito melhor do que eu numa conversa individual. A Cláudia desmonta-nos! Ela já tinha muita experiência a dirigir a ACJ. Por isso é que não gosto de a mencionar como minha assistente, não há sequer uma designação para aquilo que somos. Não me imagino a fazer isto com outra pessoa. O insólito de tudo é saber que se tivesse sido eu a escolher, se calhar, não teria escolhido a Cláudia – afinal, eu nem a conhecia muito bem, ela nunca tinha ido comigo à casa de banho, eu não sabia o que era passar um fim-de-semana fora com ela. Ela podia nem ter jeito nenhum para isto!

Cláudia – Eu costumava ver a Mafalda na igreja e as suas intervenções chamaram-me a atenção. Como eu tinha feito jornalismo radiofónico, convidaram-me para ser a "voz-off" e ler as crónicas dela na rádio. Dar voz não é apenas dar um recurso, é algo que tem de fazer sentido para quem dá essa mesma voz. Das primeiras vezes que o fiz, chegava a meio da crónica e o seu conteúdo era de tal forma forte que eu quase interrompia a leitura. Decidi então fazer leituras prévias, chorava aquilo que tinha a chorar e depois já conseguia ler mais tranquilamente. Mas achei que aquelas mensagens não podiam ficar limitadas a um único canal, achei que o mundo tinha de conhecer a Mafalda. Mais do que ler ou conhecer, o mundo tinha de ouvir a Mafalda. Muitas vezes menosprezamos o poder de algo que é imperfeito quando, na verdade, essa imperfeição é exactamente aquilo que nos vai tocar. Custava-me imenso quando as pessoas diziam: ah, a Mafalda tem voz de desenho animado. É verdade que tem (risos), mas é tudo isso que faz a Mafalda aquilo que a Mafalda é, porque se ela fosse uma mulher fascinante, com uma voz maravilhosa e as medidas certas, seria tão banal como outras. É esta desconstrução que faz da Mafalda a Mafalda. E isso deu-me forças para ir ter com ela e fazer-lhe aquela proposta…. Eu sou um pouco a louca da família, estou sempre envolvida em várias coisas e perguntei à minha família, ao meu marido e ao meu filho, se me apoiariam caso a conversa com a Mafalda corresse bem e ela dissesse "sim" a este casamento (risos).

Mafalda – Quando a Cláudia me fez a proposta, eu estava a sair de um ano sabático – estudei Jornalismo, trabalhei oito anos na Valorsul e depois, na fase da morte da minha mãe, precisei de parar uns tempos. Um ano e meio depois, estava ainda a tentar perceber o que era importante para mim quando aparece a Cláudia. Ela adiantou-se. Ela viu antes de mim.

 

Como foi o encontro?

Cláudia – Marcámos um café e eu perguntei-lhe: se pudesses fazer algo a 100% com a tua vida, o que farias? Esquece as tuas limitações, esquece que não andas e que dependes de alguém. Quem é que te visionas a ser? Aí, ela começou a patinar um bocadinho, os olhinhos ficaram muito arregalados e depois disse: o que eu gostava mesmo era de fazer palestras. E eu: se te acompanhar, deixas de recusar convites? Ela patinou e patinou outra vez e respondeu: mas nós nunca sequer saímos juntas! Tu estás preparada para lidar comigo? Respondi: eu não tenho de estar preparada, estou disponível e tu vais ensinar-me… Isso implicava, da parte da Mafalda, entregar a sua intimidade a uma pessoa com quem ela nunca tinha privado, e isso sim é de uma exposição que eu não sei se seria capaz. Perguntei-lhe: e tu, estás preparada? A Mafalda é muito especial, quem a ouve não fica indiferente, mas precisa de alguém que seja uma alavanca, que faça aquilo que ela não pode e que lhe diga: não te preocupes, podes arrancar, tens alguém contigo. Ela continuava com dúvidas: mas achas mesmo que as pessoas vão querer ouvir-me?

Mafalda – Se calhar, foi uma defesa para parecer que a Cláudia é que não estava preparada para mim, mas quem não estava preparada era eu… Por outro lado, há muita gente a fazer palestras ou, como se diz em português, há muitos "oradores motivacionais". Não gosto da designação, mas é aquela que existe. O que me dá alguma tranquilidade é saber que eu tenho uma história, e que esta história não foi inventada, é a minha história, que me foi dada, e é esta história que quero partilhar. Claro que existem conceitos e teorias que aplico. Falo de liderança, de motivação, de superação, de trabalho de equipa.

Cláudia – "Isto que nós temos", por exemplo, é um trabalho a dois, se eu falhar, ela falha, se ela falhar, eu falho. Tudo o que fazemos pode ser fabuloso ou catastrófico, porque ela sou eu e eu sou ela, acredito que é isso que nos diferencia. Em geral, não estamos muito habituados a depender de alguém, somos muito individualistas e é muitas vezes por isso que os trabalhos de equipa falham. A partir de determinado ponto, deixamos de estar em equipa e ficamos ali, no "eu". E se dependêssemos realmente de alguém…? E se o meu sucesso dependesse mesmo directamente da pessoa que está a trabalhar comigo? Claro que há espaço para o indivíduo, tem de haver, mas isso é identidade e, aí, ninguém mexe. Mas às vezes esquecemo-nos de procurar o nosso sonho nos sonhos dos outros, não precisamos de fazer o mesmo que os outros, mas podemos fazer algo que complementa o sonho do outro e que, ao mesmo tempo, seja o nosso sonho. Acho até que nos falta procurar essa paixão que faz saltar da cama. Para nós, cada dia é mesmo uma surpresa.

Mafalda – Nós somos o verdadeiro Kinder Surpresa! Eu sou o leite, ela é o chocolate e a surpresa está no meio – é o que sai quando vamos para algum lado. E estamos constantemente a partir a casca do ovo!



Camuflada ou não, continua a existir condescendência: "Ah, ela é deficiente." Ou somos coitadinhos ou super-heróis, não há meio-termo. 

 

E o lado menos bom da história? Também existirá.

Cláudia  – É normal mostrar apenas a parte boa, mas tudo tem o outro lado, o lado de bastidores, que é muito trabalhoso, porque é nas fraquezas que normalmente somos apanhados e não no nosso potencial. Agora estamos a procurar essas nossas brechas, porque existem brechas, não somos supermulheres…

Mafalda – A Cláudia é um bocadinho polvo, consegue pegar em mim, consegue pegar na cadeira, conduzir, maquilhar-me, esticar-me o cabelo, dar-me a mão quando estou a tremer… Às vezes, ela é o guarda-costas, outras vezes é o batedor. Por isso, é que digo que ela faz tudo. Há momentos em que tem de fazer de minha enfermeira, há momentos em que é um bocadinho mãezinha, há momentos em que é só uma companheira maluca… Na verdade, acho que se tivéssemos um histórico emocional anterior, isso faria com que ela pudesse ter algum pudor em dizer determinadas coisas com receio de me magoar. E há algo muito importante: a Cláudia não é nada deslumbrada, nem me deixa deslumbrar. É extremamente crítica e está sempre a desafiar-me. É muito lúcida. Sei que iria afundar-me se tivesse alguém ao meu lado a bajular-me constantemente. Há uma linha muito ténue entre auto-estima e ego desmedido e eu quero muito ter a noção de que aquilo que faço é encorajador para outros… Por outro lado, a Cláudia não é uma negativista, mas prevê as tais brechas que podem acontecer à medida que assumo as minhas convicções... Sim, há muita gente que não ainda me caiu em cima por causa da condescendência – ah, ela é deficiente.

 

Continua a existir condescendência?

Mafalda – Camuflada ou não, mas há. Eu não preciso que os outros me aceitem. Erradamente, pode achar-se que as pessoas com deficiência vivem para ser aceites. As pessoas precisam de ser aceites, precisam de se encaixar, precisam de pertencer, sim. Mas nós não fomos feitos apenas para encaixar no puzzle. A ideia é bonita, mas não posso achar que vim ao mundo só para fazer número ou para ser apenas uma peça para encaixar. Eu quero que aquilo que faço e que digo faça diferença na vida das pessoas. Acho que somos todos diferentes para fazer a diferença… Mas, sim, ainda existe muita condescendência. Hoje chacinam-se pessoas no Facebook e eu já me "coloquei a jeito" para isso mesmo – mas eu não concebo uma vida de intermédios, de talvez, a meio gás, a meio termo e por vezes decido, em consciência, tomar uma determinada posição pública em temas fracturantes da sociedade. Já assumi, por exemplo, que sou totalmente contra a eutanásia, o que chocou algumas pessoas. Ninguém me atirou pedras no Facebook, mas se não estivesse numa cadeira de rodas, provavelmente, teria sido altamente criticada. Por isso é que falo em condescendência camuflada, ninguém a assume. Ou somos coitadinhos ou super-heróis, não há meio-termo. E não sei o que é pior. Podia encostar-me à sombra da bananeira e achar que, por causa dessa condescendência, a vida seria mais fácil. Costumo dizer que as coisas vêm do céu, mas também não caem do ar, eu tenho de fazer a minha parte. Nunca tive vergonha de apresentar-me às pessoas, mas também nunca usei as minhas rodas para achar que tinha mais direito a isto ou àquilo. 

 

Portugal está preparado para as "Mafaldas"?

Mafalda – Ter uma Cláudia dá jeito e o ideal seria termos muitas Cláudias (risos). Nunca ninguém me perguntou porque é que eu não sou uma activista na luta pelos direitos dos deficientes. É claro que quero defender os direitos, e quero defender os direitos de toda a gente, mas acho que esse não é o meu papel. Há também quem possa pensar: mas tu não és boa para os "teus"? Calma, as pessoas com deficiência não são uma espécie. Eu não falo para as pessoas com deficiência, eu falo para as pessoas. E há quem tenha nascido para ser altamente reclamador e activista, e essas pessoas são necessárias, depois há outras que estão sempre com o dedo em riste a apontar para o que está mal, e está sempre tudo mal, e depois existem os optimistas incorrigíveis, como eu, mas que também são precisos. São olhares diferentes. Um amigo meu costuma dizer: tu não te distrais tanto como nós porque estás sempre sentada, e ainda por cima empurram-te, não tens de estar preocupada com nada, então consegues olhar para as coisas com um detalhe e uma atenção que as outras pessoas não conseguem...

 

E o que tentas passar às pessoas?

Mafalda – O objectivo principal, que pode parecer um cliché mas que é real para mim, é levar esperança às pessoas, e não é aquela esperança barata e moralista de dizer algo como: se eu ando numa cadeira de rodas e consigo, então vocês também conseguem. Também não acabo as frases com "yes, we can". Diz-se que a esperança é a última a morrer, eu digo que a esperança tem de ser a primeira a nascer. E o meu "storytelling" tem pano para mangas. Acima de tudo, sou chamada para ir. Ir. A característica principal da minha doença é partir os ossos, e estou constantemente a ser chamada para partir, para partir pedra, e partir também é ir. Assumo que aquilo que faço é propósito de vida, não me imagino a fazer outra coisa e isso dá-me uma enorme responsabilidade. Perguntam-me se eu não tenho medo. Prefiro encarar como peso da responsabilidade. O medo pode paralisar, pode fazer andar para trás ou esconder. O peso da responsabilidade faz-me avançar.

 

É mais difícil estar numa cadeira de rodas sendo mulher?

Mafalda – Acho que sim. Se calhar, teria razões para ser amargurada com a imagem. Por outro lado, há quem ache que sou uma vaidosa de primeira, no sentido pejorativo, mas sinto-me muito bem na minha pele, no meu corpo, sinto-me bem em tudo aquilo que sou, e acho que isso passa para as pessoas. O principal ensinamento que posso dar em termos de auto-estima e motivação no feminino é dizer que não há coisas formatadas e não é por não ser 86-60-86 que vou deixar de me preocupar com as idas ao cabeleireiro ou deixar de usar sapatos altos mesmo estando numa cadeira de rodas. Se pegar em todos os temas das palestras, percebo que estou sempre a desconstruir coisas. Por vezes, faço humor um bocado negro e até pode ser demasiado negro, estou a aprender a colocar filtros em mim própria… Penso que as pessoas têm medo de rir porque receiam que eu ache que elas estão a gozar comigo, mas eu já estou a gozar comigo! O humor, para mim, sempre foi a maior arma contra o preconceito.

 

A nossa educação está mais inclusiva?

Mafalda – As pessoas acham que estamos mais inclusivos. Mas há uma diferença entre integração e inclusão, a integração tem que ver com a questão do puzzle. A inclusão é outra coisa. Estamos a dar passos numa coisa que tem de existir antes e que é a cidadania. Não podemos pedir às pessoas que sejam inclusivas se não forem boas cidadãs. E falta trabalhar, na escola e até nas empresas, questões como a empatia, o saber colocar-se no lugar do outro. Muitas vezes, em nome da liberdade individual, fazemos tudo o que nos apetece, a liberdade individual serve para tudo. Por outro lado, ao falarmos em educação inclusiva às nossas crianças, parece que nós, adultos, já morremos e não temos capacidade para nos educarmos também. E temos!


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