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Luísa Costa Gomes: Para mim, às vezes os mortos estão mais vivos do que os espíritos contemporâneos

A escritora e dramaturga Luísa Costa Gomes não gosta de adaptar mas de recriar, de reler, isto é, de criar uma nova história a partir da sua própria leitura. Foi o que fez com “Orlando”, de Virginia Woolf. Chamou-lhe “A Grande Vaga de Frio”, texto que fala de feminismo, de literatura, de romper cânones, de libertação. Estreia este fim-de-semana no CCB.

Bruno Simão
13 de Outubro de 2017 às 14:00
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Luísa Costa Gomes escreve romances, contos, peças de teatro. A cada forma corresponde uma maneira de dizer, de fazer, talvez mesmo de ser. Um modo de  comunicar: entre vivos ou entre vivos e mortos. Não gosta de adaptar mas de recriar, de reler, isto é, de criar uma nova história a partir da sua própria leitura. Foi o que fez com "Orlando", de Virginia Woolf. Chamou-lhe "A Grande Vaga de Frio", por causa da imagem do caos que se segue ao derreter do gelo, à oportunidade transformativa de sermos outros, quando ser outros é tantas vezes sermos melhor do que nós próprios. Texto que fala de feminismo, de literatura, de romper cânones, de libertação. Estreia este fim-de-semana no CCB.

1. Quando o Carlos Pimenta me falou no "Orlando", eu disse: "Ai, o Orlando, que maçada"... Coisas de snobeira intelectual... E depois fui reler. E ainda bem que fui reler porque o livro é extraordinário: é um livro que é um divertimento, é proposto como um divertimento, e acho que é dos poucos livros em que a Virginia Woolf se divertiu, se deixou ser, se deixou imaginar e não teve medo da sua própria loucura. É um livro exuberante.

O "Orlando" faz uma espécie de revisitação paródica de 400 anos de literatura, do período isabelino, portanto, do final do século XVI até 1928 [quando a Virginia Woolf escreve]. E o que é curioso é ver como é que essa paródia literária, essa revisitação literária, essa recriação literária, foi desde então também revisitada, objecto de imensas recriações e releituras. Isso quer dizer que é um livro fecundo, produtivo, que não se esgota em si próprio e que mantém o seu próprio enigma, o seu próprio mistério. É um livro singular que não segue grandemente protocolos a não ser o protocolo da sua própria escrita: e penso que, até hoje, isso é a sua solução.

"Adaptação" é um conceito limitativo e redutor. Gosto mais de "recriação" ou de "releitura" ou de "nova proposta a partir de". E aquilo que faço em "A Grande Vaga de Frio" é justamente pegar naquela matéria e contar outra história. A minha peça começa quando acaba o livro. Mas não é uma sequela. É uma espécie de construção em espelho daquilo que para mim é importante no livro. Para mim, é uma forma de me apagar ou de me plasmar no espírito do outro autor. É quase uma forma de parasitismo criativo, se isso é possível.

O Borges chamava a isso infidelidade criadora. É uma forma de infidelidade que eu penso que é uma outra verdade que está no livro e que o enriquece. As releituras, as recriações, "a partir de", "com", "sem": tudo isso enriquece o livro. O livro não está morto. Uma obra morta é uma obra que nós lemos com uma interpretação canónica. Aliás, o próprio "Orlando" é uma grande bandeira contra a leitura canónica, contra o género canónico, contra os protocolos, contra as convenções. É um livro cujo grande valor é o valor da universalidade, da liberdade e da libertação.

2. O título "A Grande Vaga de Frio" vem de uma parte do "Orlando" que remete para uma grande vaga de frio que realmente existiu. Acho que é uma imagem extraordinariamente sugestiva do grande paradoxo do género. O grande paradoxo do género é justamente que a congelação permite a protecção num género, masculino ou feminino, rejeitando tudo aquilo que faz parte, tradicionalmente, do que se pensa ser o género oposto. A congelação permite essa segurança de não viver a permanente angústia da indeterminação de género.

O grande momento do romance parece-me ser aquele em que ela descreve aquele terrível caos da descongelação. Quando finalmente acaba a grande vaga de frio e todos aqueles pedaços de gelo descongelam. Tudo se destrói, tudo de desmorona, e é o caos total. É uma imagem para a violência da enxurrada dessa angústia, desse pânico que é a perda da identidade. A identidade de género não e só sexual: é cultural, é social, é psíquica. Por outro lado, o caos é a grande libertação, é o poder sentir de todas as maneiras imaginárias; ser tudo: ser homem, mulher, criança, velho, já ter 400 anos e afinal só ter 36, de terem passado dois séculos e afinal só terem passado dois anos. É, no fundo, a grande liberdade do tempo, do espaço, de uma época. É a libertação em relação à História, porque aquilo que é terrível no "Orlando" é a História, é a época vitoriana, é o espartilho das potencialidades, é o ter de lutar por direitos que já deveriam estar mais do que conquistados.

Não devia ser preciso ter estas discussões mesquinhas sobre quem é que lava a loiça e quem é que cozinha e quem é que vai buscar as crianças à escola. Já devia ser mais do que óbvio para toda a gente.

3. O teatro é feito com pessoas, para pessoas. O teatro é feito ali, ao vivo, e cria uma comunhão. É uma cerimónia. É algo que acontece num determinado momento e que é partilhado por um certo número de pessoas na mesma altura. Isso é cada vez mais raro. Tem que ver com a presença e com a dádiva da presença. E com a representação dessa presença. Quanto mais vejo espectáculos e quanto mais trabalho em teatro e estou nos ensaios, mais percebo que as dinâmicas, as energias, as coisas que não são palpáveis, são a matéria do teatro. São a matéria daquele momento, daquilo que acontece ali e que é irrepetível e irrecuperável.

Já a fantasia do livro, para mim, é escrever para um leitor que vai encontrar o livro cheio de pó daqui a 200 anos, preferencialmente uma menina, como eu fui quando comecei a ler e comecei a ser leitora. Uma menina que vai ao sótão e encontra um livro meu e fica muito entusiasmada com um espírito que viveu há muito tempo.

A literatura, e sobretudo o romance, é um diálogo com mortos. Para mim, às vezes estão mais vivos do que os espíritos contemporâneos. O meu diálogo é com essas coisas que ficam, que vêm de outros tempos e que continuam a dizer coisas importantíssimas.

4. Estive a acabar um romance que andava a escrever há três anos e que penso que sairá para o ano. Penso que está mais ou menos na sua forma final, mas é um romance que podia estar a escrever três anos ou 300. Cada vez mais tenho essa noção: de que um livro fica acabado numa etapa da sua evolução. Pode ser aquilo, mas se eu continuar a trabalhá-lo é outra coisa e outra e outra e outra. É como no "Orlando", o livro que ele vai escrevendo e escrevendo e rasurando e escrevendo.

Sempre fui contra a noção de que o escritor escreve sempre o mesmo livro, e achava que era uma grande limitação, mas agora acho que é um bocado verdade. O escritor escreve sempre um pouco o mesmo livro, que é, no fundo, o seu universo particular.

Não é por acaso que o Aristóteles considerava que a ciência não era do singular. O singular é infinito.


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