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José Maria Vieira Mendes: Não quero abdicar da palavra dramaturgo

O dramaturgo José Maria Vieira Mendes já fez de tudo para palco: adaptar textos, escrever textos originais. No CCB, este sábado, nos Dias da Música, pode ver-se uma das óperas que adaptou. Escreveu o libreto a partir do conto de Sophia de Mello Breyner, “O Rapaz de Bronze”.

Bruno Simão
28 de Abril de 2017 às 12:22
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José Maria Vieira Mendes é um dos mais importantes dramaturgos da sua geração. Ainda que parte do seu trabalho, com o Teatro Praga, seja de criação colectiva, decidiu reivindicar para si um lugar de escritor, onde existe apenas ele e o texto. Porque também as peças podem - devem - ser escritas, publicadas, lidas, mesmo que não cheguem a ser vistas num palco. O teatro de texto talvez esteja fora de moda, mas pensar a linguagem e o lugar dela na maneira como nos descrevemos - na maneira como dizemos as coisas e lhes atribuímos referências - é tarefa para todos os tempos. Já fez de tudo para palco: adaptar textos, escrever textos originais, participar em criações em que o seu texto talvez se tornasse irreconhecível. No CCB, este sábado, nos Dias da Música, pode ver-se uma das óperas que adaptou. Escreveu o libreto a partir do conto de Sophia de Mello Breyner, "O Rapaz de Bronze", uma pequena história de como um pouco de imaginação é suficiente para nos libertarmos de espartilhos.

1. Já fiz muitos trabalhos de adaptações. Aliás, foi assim que comecei no teatro e na dramaturgia. E, à medida que fui fazendo adaptações, comecei a ir mais à procura daquilo que me interessava no texto original. Ao princípio, era mais agarrado ao texto original, mas a certa altura comecei a ler o texto e a perguntar-me como é que eu, enquanto leitor, me relacionava com o texto e a tentar exprimir essa relação, fosse numa peça de teatro ou num libreto.

Foi o que fiz no caso da ópera "O Rapaz de Bronze" [a partir do conto infantil de Sophia de Mello Breyner]. Como é que eu, uma pessoa que tinha uns 30 anos na altura em que o adaptei, me relacionava com aquele texto, o que é que me interessava ali? E havia um lado onírico, de uma personagem que tem uma relação onírica com uma série de personagens criadas pela sua cabeça que se animam: plantas que se animam, um jardim que se anima, uma estátua que se anima. Havia um lado de criação de liberdade. A partir do momento em que se começa a sonhar e a imaginar, pode-se ir para imensos sítios. Há a possibilidade de nos libertarmos de uma série de espartilhos nesse processo de imaginação, nesse processo onírico.

2. Escrevi um livro - que é, na verdade, a minha tese de doutoramento - chamado "Uma Coisa Não É Outra Coisa", em que o ponto de partida é precisamente a minha biografia ou um processo de vida de um dramaturgo, que começa num certo tipo de teatro, muito ligado aos Artistas Unidos, aquilo que na gíria é o teatro de texto, em que o dramaturgo é o centro do espectáculo. O texto é o centro do espectáculo e, por inerência, o dramaturgo normalmente é chamado a dar o seu aval ou a dar a sua opinião e a sua opinião é muito tida em conta. É um teatro muito assente numa interpretação de um determinado texto.

Passei dessa fase para uma outra fase, de crise. Conheci o Teatro Praga e comecei a pôr em causa coisas que até aí tinha como seguras e essenciais, coisas que já nem discutia e, de repente, começo a discuti-las.

Entrei numa espécie de crise da relação entre o texto e o espectáculo. Queria perceber como é que a minha literatura dramática se podia aproximar de um determinado teatro ou de um determinado espectáculo. Nesse processo, percebi que é uma falsa questão, na medida em que é um objectivo impossível de alcançar. Há uma separação incomensurável. Não é possível aproximar-me de outra pessoa. A única coisa que posso fazer é tentar relacionar-me com ela, mas não imaginar que vou conseguir chegar a ela, portanto, chegar ao teatro e, até, ser o teatro. A literatura dramática não pode ser o teatro, não pode ser o espectáculo. A única coisa que pode ser é ela própria.

Chegou uma altura em que me libertei dessas preocupações e comecei a escrever peças sem pensar em espectáculos. Continuo a trabalhar com o Teatro Praga e a fazer espectáculos com o Teatro Praga, e aí estamos colectivamente a criar um objecto artístico, a pensar o que vai ser aquele espectáculo, eventualmente, a escrever bocados de coisas para aquele espectáculo. E, depois, tenho uma vida paralela que é a vida do dramaturgo que me interessa que seja uma vida feita para a escrita e para a publicação.

Separar um bocadinho as coisas foi muito bom para a minha cabeça. Tornou-me uma pessoa mais saudável, e um dramaturgo mais saudável - e tornou a minha escrita mais saudável, menos ansiosa. Sem estar sempre com a preocupação: será que isto funciona em teatro? Ao escrever isto, será que isto vai ser feito? Isso já não me interessa.

Tornou-se mesmo uma espécie de mantra político. Uma das coisas que estou sempre a dizer, quando dou aulas ou "workshops", é que o que é preciso agora fazer pela literatura dramática é publicá-la e dizer às pessoas que é possível lerem literatura dramática sem verem espectáculos de teatro. Podem ler um livro de literatura dramática como lêem outro livro. E as pessoas, de repente, percebem que a literatura dramática pode ser muito útil, como toda a outra literatura.

3. A peça que estou a escrever segue muito os últimos trabalhos do Teatro Praga, em que começámos a trabalhar muito as questões de identidade, nomeadamente - porque é onde, politicamente, elas se revelam mais - as questões de identidade de género.

Tem que ver com a minha própria identidade no teatro e a minha própria identidade na literatura dramática. Quando me descrevem como dramaturgo, fico sempre um bocadinho aflito, porque sei que se gera na cabeça de uma pessoa uma imagem que não é aquela que corresponde àquilo que eu acho que é a minha identidade. E, no entanto, não quero abdicar da palavra dramaturgo. Interessa-me manter essa palavra. Isto é a grande problemática da identidade de género: não quero deixar de dizer que sou uma mulher, por exemplo, mas ao mesmo tempo não quero que a minha identidade seja restringida a uma ideia que as pessoas têm do que é uma mulher.

Depois, há o caso das pessoas que não se identificam nem com masculino nem com feminino. São pessoas que não encontram uma linguagem para elas: eu não sou nem "ele" nem "ela", como é que me vais chamar?

Nesta peça que estou escrever, uso toda a gama de pronomes. Umas vezes é "ela", outras "eles", outras "vós" ou "tu", e ao mesmo tempo os verbos não concordam necessariamente com os sujeitos. Isso cria uma identidade fluida, que acho que é mais honesta e que tem mais que ver com a maneira como muitas pessoas se identificam. Muitos de nós não nos identificamos a cada momento com uma só coisa. Estamos sempre a mudar. E, às vezes, somos mais mulher, outras vezes mais homem, ou uma ideia do que é mulher e do que é homem.

Passamos por uma gama de caixas sociais e, no entanto, a língua está sempre a agarrar-nos, a capturar, a cristalizar. Brincar com a língua pode ser uma maneira de estar permanentemente a fugir.


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