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João Wengorovius e as conversas com 21 chefs: a espinha da vida

João Wengorovius é publicitário, é gestor, é fotógrafo, é cozinheiro, é autor, é jornalista. Acaba de publicar um livro no qual conversa com 21 grandes chefs mundiais. Não há receitas nestas 500 páginas extraordinariamente ilustradas. Há histórias. Há uma ideia de vida que é preciso descascar. A cada uma delas, o seu corte, sabor, textura.

05 de Janeiro de 2018 às 12:00
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A entrada


Um tipo chega à meia-idade, deixa para trás a liderança nacional de uma grande empresa de publicidade, tem dinheiro para viver algum tempo sem trabalhar, uma pausa para decidir o que fazer, talvez uma agência com o amigo e sócio de sempre ou então um negócio de consultoria na área do marketing. Mas deixar para trás um emprego tão bem pago, até desejado, e entrar noutro, mesmo que igualmente tentador, é como sair de um casamento e entrar noutro a correr. O escritor Philip Roth pôs a acrobacia (digo: travessia) doutra maneira: é como sair de uma prisão de alta segurança e ir a correr para outra prisão de alta segurança. Não há nada de errado nisso, desde que percebamos que é isso mesmo que estamos a fazer.

Conheci o João Wengorovius (JW) um pouco antes desta fase em que ele estava para deixar a BBDO e acompanhei esta extraordinária bifurcação na vida dele. Tentei aliás convencê-lo a ir para a frente com a tal agência - onde eu talvez também coubesse: era, portanto, por interesse que lhe dava as minhas sugestões egoístas - e depois vi-o partir (a palavra certa é rumar)… vi-o rumar para a escola do chef Alain Ducasse onde, de certa forma, uma parte da vida dele começou a ganhar outros contornos e um sabor diferente, ingrediente a ingrediente e depois também página a página, apesar de esta escolha ter na verdade começado a ser preparada muito tempo antes, mesmo que ele ainda não o soubesse ou sequer imaginasse.


Albert Adrià, que agora dirige a cozinha do Enigma, em Barcelona, com o livro "We Chefs" aberto na página que lhe é dedicada.


Quer dizer, o João Wengorovius era presidente de uma grande agência de publicidade, mas queria dar outro passo, um género de impulso partilhado com tantas outras pessoas naquela fase da vida. Podemos até chamar-lhe a banalidade da dúvida. A meio dos 40 há perguntas com que nos voltamos a confrontar: é mesmo isto que eu quero fazer, é assim que quero viver? Alguns, os que podem ou têm menos imaginação, compram um descapotável; outros começam a fazer maratonas ou surf; outros resignam-se até voltar a encontrar o fio à meada, outros nunca mais se pacificam por dentro. E há também aqueles que deixam passar a inquietação como se fosse um surto tardio de uma doença infantil. E com o João… seria como?

Antes de tirar a licenciatura em Gestão no ISEG, há duas décadas, ele estudara fotografia durante ano e meio no Arco, o que revelava já uma certa inclinação para as artes mais do que para os números e contas, mas a vida é o que é. As escolhas acontecem, sucedem-se num repente e foi assim que o JW se tornou planeador estratégico até assumir funções no topo da cadeia alimentar do negócio da publicidade. Tudo a correr bem, portanto.

O planeador estratégico é o tipo que ouve o pedido do cliente - que em regra quer uma campanha qualquer na televisão, no jornal ou onde for -, estuda a marca ou o produto realmente a fundo e procura encontrar o ponto G, a porta de entrada do consumidor, o famoso "insight" que, então sim, lança os criativos à procura da melhor forma de expressarem esse valor (riqueza, ideia), mas já com um campo de acção delimitado e, portanto, com mais possibilidades de chegar a alguma espécie de êxito.

Há várias regras para tentar atingir este ponto-chave, mas a ideia é juntar e filtrar informação do produto e do negócio (o sector em que está inserido, mas não só), dar tempo suficiente para que este todo fermente e se misture com outras informações até criar uma combinação com sabor, textura e forma únicos. É desse bolo que um dia talvez possa resultar o momento eureka: a materialização de tudo isto num filme, num gesto ou numa frase que se torna assunto e traz relevância pública, e talvez vendas, ao produto em causa.


Massimo Bottura, chef e dono da Osteria Francescana, em Modena, Itália, exibe o livro "We Chefs" na página em que é referido.


O João Wengorovius escreveu há muitos anos um livro despretensioso sobre o tema - chamava-se "Ferramentas Ocultas do Planeamento Estratégico" -, no qual sistematizou os passos necessários para descascar esta cebola bem fininha. Digamos que, além de ajudar os jovens aprendizes de publicidade a dar os primeiros passos sem tropeçar, o João também aproveitou para fazer os quilómetros inaugurais na edição de livros. Nem ele sabia onde o trilho o iria conduzir anos mais tarde.

Portanto, o João estava nisto da publicidade, embora mais metido na gestão das pessoas e dos clientes, quando finalmente deixou a BBDO com a tal liberdade monetária para escolher confortavelmente o passo seguinte. Enquanto o pau ia e vinha, enquanto fazia contas num caderninho e procurava perceber a viabilidade de lançar uma agência própria de publicidade - x pessoas, y de salários mais x clientes para pagar isto tudo numa altura em que o cheiro a enxofre da crise já era bem perceptível -, disse-me que, entretanto, decidira tirar um curso de cozinha em Paris. A aprendizagem seria por módulos, o que lhe permitiria ir e vir a Lisboa durante esse período, para estar com a mulher e as filhas, além de definir melhor o que faria a seguir. Aos 46 anos não podia ainda dar-se ao luxo de viver apenas dos rendimentos.


Não há outra forma para cozinhar bem: ter paciência - com os ingredientes e a sua natureza particular, com os tempos de confecção - além de evidenciar gosto pelo detalhe.  


A primeira parte do curso de cozinha iria durar dois meses e meio. Seria uma imersão total, sem tempo para fazer ou pensar noutra coisa, e depois voltaria a Paris uma semana por mês ao longo do ano para completar outras etapas da aprendizagem, além de ter pela frente, no epílogo da aventura entre os tachos, o duro estágio de uma semana no Rech, um dos restaurantes - este com uma estrela Michelin - de Alain Ducasse, o chef e dono da escola.

O prato principal


O que eu não disse até agora foi que o JW sempre gostara de cozinhar e sempre revelara, digamos, um espírito meticuloso e paciente. Não há outra forma para cozinhar bem: ter paciência - com os ingredientes e a sua natureza particular, com os tempos de confecção - além de evidenciar gosto pelo detalhe. Se os olhos falam, as mãos às vezes gritam quem somos: as do João, embora gestor profissional, são as mãos de um artesão, dedos que pegam nas coisas e constroem o que antes não existia, embora não estejam calejadas pelo esforço mecânico.


"Gambas marinadas em vinagre de arroz, molho de cabeça de gamba, velouté de algas e phytoplankton", no El Celler de Can Roca, Girona, Espanha.


E é aqui que as pontas soltas, cultivadas ao longo de uma vida, começam a dar forma a outra realidade e a novas possibilidades. Na verdade, um tríptico de possibilidades. O publicitário e gestor que durante mais de 20 anos aprendeu a sistematizar a informação que lhe chegava das mais diferentes origens para lhe dar uma abordagem singular juntou a esta bagagem o gosto pela cozinha e o treino profissional ao mais alto nível, e embrulhou tudo isto com o olhar fotográfico que também o acompanhara a vida inteira.

Desta soma de escolhas e talentos e impulsos poderia resultar um restaurante, seria provavelmente a escolha mais óbvia, juntaria o espírito de gestor com o de cozinheiro. Mas JW seguiu outra direcção. A dele.

A sobremesa


Ao longo dos últimos quatro anos, João Wengorovius estabeleceu a sua empresa de consultoria em marketing - clientes como Nos, CUF, Navigator, etc. -, o que o estabilizou profissionalmente, e abriu um novo capítulo; continuou a cozinhar para os amigos, completou o curso na escola de Alain Ducasse, fez o imperioso estágio em que passou de CEO à função mais baixa e elementar numa cozinha, e a seguir, a seguir veio o depois.

Ora, o depois é uma viagem que se estendeu durante praticamente quatro anos pelas Américas, pela Europa e pela Ásia, onde o recém-formado cozinheiro Wengorovius foi marcando encontros com os grandes chefs mundiais. Foram 21 longos almoços, às vezes com direito a repetição, nestes restaurantes do olimpo culinário.

Cito apenas alguns nomes. Albert Adrià, Massimo Bottura, Joan Roca, Helena Rizzo, Alex Atala, José Avillez. Restaurantes tão conhecidos como o Tickets, em Barcelona, ou a Osteria Francescana, em Modena, ou o Ultraviolet, de Paul Pairet, em Xangai.

O JW ia para estas longas viagens com uma agenda encucada: queria conversar sobre comida, claro, mas ambicionava mais. Além de os fotografar em acção, aos chefs e às suas vastas equipas, além de inquirir sobre temperos e produtos, escolhas e ementas, ele pretendia traçar um paralelismo entre criação e cozinha, entre a imaginação e a autoria. Queria, no fundo, responder a uma pergunta simples e exigente, que o acompanhara a vida inteira: como aproveitar a vida que temos sem nos deixarmos levar apenas pelas marés e correntes, isto é, pela enganosa inércia? Como criar uma voz própria e única no meio do chinfrim todo que nos envolve? Como criar uma marca com os nossos talentos singulares, como os encontrar, trabalhar e expressar? E finalmente: como ganhar consistência e, um dia, reinventarmos o nosso caminho sem deitar fora estupidamente o que ficou para trás, pelo contrário, aproveitando o conhecimento e a experiência acumuladas para encontrar uma nova forma de viver connosco e com os outros?


"Overlap": bolo Mondrian da chef Caitlin Freeman.


Aos olhos do João Wengorovius, o meio ultracompetitivo da alta-cozinha apresentou-se justamente como a metáfora ideal deste eterno combate. Os chefs teriam de explicar-se, teriam de contar os seus segredos. Não os segredos das receitas, até porque eles hoje são divulgados abertamente no Instagram, onde os chefs partilham as suas deambulações - sabem que o que faz a diferença é o dedo deles, não a ordem dos ingredientes -, mas o outro, o maior de todos os mistérios: como sermos verdadeiramente autores das nossas vidas.

O livro pode ser comprado em www.wechefsbook.com, na amazon.co.uk ou nas livrarias da editora Sistema Solar|DOCUMENTA (ex.: Assírio e Alvim), no Chiado, entrada pela Rua Garrett 10 ou perto da Almirante Reis na Rua Passos Manuel 67. Preço 90 euros.

Retrocedo cinco séculos. Estamos em Florença, em pleno Renascimento. Leonardo da Vinci escreve uma carta ao príncipe de Milão, Ludovico Sforza. Quer emprego, quer trabalhar na cidade do magnífico Duomo, e, na missiva - uma espécie de "currivulum vitae" -, ele enumera os diversos talentos de que dispõe. Sabe fazer pontes, diz ele, armas e canhões, neste caso uma meia verdade; sabe construir edifícios e todo o género de construção inovadora, tudo capacidades que podem ser muito úteis ao príncipe em tempos de ameaça francesa. As descrições feitas na carta são minuciosas e deixam para o fim o essencial: ah, diz Leonardo, e eu sei pintar.

O autor de "Mona Lisa" e "A Última Ceia" sabia pintar. Claro que ele sabia pintar. Mas a poderosa vontade de conseguir um novo emprego e reinventar-se era mais forte e marcou-o a vida inteira a ponto de ser essa maravilhosa abertura a definir o homem do Renascimento: aquele que tem múltiplos talentos e expressões, da matemática à arte, da engenharia à música, sem esquecer a arquitectura. Já agora: Leonardo da Vinci era vegetariano.

No fundo, é sobre isto que João Wengorovius fala com os 21 chefs (é extraordinária a candura com que se revelam a um desconhecido) e são estas conversas que dão forma ao livro "We Chefs" - há apenas uma edição em inglês -, sobre o qual era suposto eu escrever nestas páginas. Mas o que é suposto às vezes não acontece. Ainda bem: é sempre possível virar a página. A espinha da vida tem muitas ramificações.

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