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Helder Moutinho: Tenho três anos para mudar de vida

Mais do que os manos Camané e Pedro Moutinho, Helder resistiu ao fado. E resistiu até aos 24 anos. A partir daí, não parou. Acaba de lançar “O Manual do Coração”. Ele canta, ele faz gestão de carreiras, ele tem uma casa de fados, ele cozinha.

Miguel Baltazar
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Helder Moutinho cresceu em Oeiras e costumava ir com os pais ao Morangueiro, uma casa de fado amador em São João do Estoril. Mais do que os manos Camané e Pedro Moutinho, Helder resistiu ao canto. E resistiu até aos 24 anos. Trabalhou numa farmácia em Paço de Arcos, foi rapaz-estafeta em Lisboa, vendeu brindes publicitários, andou de porta em porta a angariar sócios para o Euroclube. Angariou muitos num bairro da Amadora. "Não me lembro de, em parte alguma, ter comido tantas cachupas, muambas e frangos fritos como ali. Mal batia à porta, logo respondiam: 'Entra. Ainda não jantaste? Então, jantas connosco'." Trabalhou em casas de fado, onde servia à mesa, até que passou a escrever canções e depois a cantá-las. "Sete Fados e Alguns Cantos", o seu primeiro disco, foi editado no final de 1999. Helder Moutinho acaba de lançar o seu quinto álbum, "O Manual do Coração". Fomos ouvi-lo na Maria da Mouraria, a sua casa de fados.


Em criança, eu achava que o fado era uma coisa triste. Não é fácil, para um miúdo, entender a poesia que está no fado, e o fado vive muito de poesia e de metáforas. Aos dez anos, não conseguimos sentir a nostalgia que existe na voz de um fadista e não estamos abertos para a terapia emocional que o fado é. Sim, é uma terapia emocional. Quando vamos a um psicólogo ou quando vamos à igreja falar com um padre, nós desabafamos. O fado também é isso, é um desabafo, tanto para quem canta como para quem ouve. Há muita gente que vai às casas de fados para que as emoções bloqueadas lhes saiam cá para fora.
Lá em casa, sempre se ouviu e cantou fado. Vivíamos em Oeiras e, aos domingos à tarde, os meus pais iam a uma casa de fados no Monte do Estoril, ao Morangueiro. Iam lá fadistas, família e amigos. Aquilo era uma festa, uma verdadeira tertúlia. Grelhava-se bacalhau e cantavam-se fados pela tarde fora. O Morangueiro era uma casa de fado amador, as pessoas não diziam que era uma casa de fado vadio - é uma expressão que me remete mais para a ideia de uma tasca aberta até às sete da manhã, com malta perdida de bêbeda. Remete-me, de alguma forma, para a ideia de pobreza, fome, prostituição e drogas. Tudo reunido, isto é, para mim, uma "vadiagem", que associo a sofrimento. É por isso que prefiro a expressão "fado amador". De um fado feito por amor. E era isso que os meus pais faziam, eles cantavam fado por amor.

O meu pai trabalhou na Base Naval do Alfeite até aos 50 anos. Ele era preparador de desenho. Foi sempre fadista amador, nunca ganhou dinheiro a cantar, tinha três filhos para criar e não queria arriscar. A minha mãe também cantava, mas só começou aos quarenta e tais. E eu resisti ao fado até aos 24 anos. Gostava de outros géneros, passei pela fase do rock português, do Rui Veloso, ele era o meu ídolo. Ouvia bandas pop inglesas como Classix Nouveaux, Duran Duran, Depeche Mode, Roxy Music. E gostava daquele rock americano do Bruce Springsteen, da Tina Turner, dos Ramones e dos australianos AC/DC. Eu e os meus irmãos tão depressa ouvíamos fado como ouvíamos rock, e também havia muita música brasileira a tocar lá em casa, muito Roberto Carlos. E Beatles, muito Beatles. E música francesa. Adamo, Jacques Brel, Aznavour, Édith Piaf. Éramos muito transversais. Em miúdo, cheguei a entrar no Coro de Santo Amaro de Oeiras e fiz parte de um grupo de teatro. Depois, enquanto estudava, comecei a trabalhar numa farmácia em Paço de Arcos. Foi uma experiência fantástica, eu gostava de aprender a fazer pomadas e, naquela altura, fazia-se de tudo nas farmácias. À noite, saía com amigos. Paço de Arcos era um sítio cheio de movimento, havia uma catrefada de tascas e barzinhos.
Com a experiência que tinha em farmácia, pensei seguir propaganda médica. Mas comecei a trabalhar numa empresa de brindes publicitários. Vendia canetas, agendas e pisa-papéis. Um dia, estava numa reunião com um cliente e ele convidou-me para ficar lá. Fui, então, vender música no Euroclube. Andava de porta em porta a convencer as pessoas a associarem-se ao clube. Lembro-me de vender uma colectânea do Piazzolla, que eu dizia que era um acordeonista argentino fantástico, não sabia que ele era um compositor, ainda não tinha essa cultura. Aprendi muito. E também foi interessante perceber o comportamento dos vários escalões da sociedade. Muitas vezes, íamos a bairros de pessoas mais ricas e elas nem sequer nos abriam a porta. Quando estávamos em bairros mais pobres, as pessoas falavam connosco e associavam-se com muita facilidade. Depois, se calhar, não pagavam as quotas… (risos), mas associavam-se logo.
O sítio onde fiz mais sócios foi num bairro da Amadora, ocupado por malta que tinha vindo de África. Angolanos, moçambicanos. Isto foi em 1987. Não me lembro de, em parte alguma, ter jantado tantas vezes em casa de pessoas e de ter comido tantas cachupas, muambas e frangos fritos como naquela altura. Mal batia à porta e dizia que estava a trabalhar, logo respondiam: "Entra. Ainda não jantaste? Então, jantas connosco." A forma como aquela gente nos tratava era genial. E voltei a encontrar malta que tinha conhecido na infância. Em miúdo, quando ia para a escola, a minha mãe dava-me sempre duas sandes e dizia: "É para o menino que veio de África." Voltei a encontrar alguns deles nos bairros camarários construídos especificamente para os alojar. E sentia ali um calor humano, algo que não havia nos bairros das pessoas ricas.
Vivo num bairro em Carcavelos - gosto de sair à rua e cheirar o mar, preciso de sentir o mar - e por vezes as pessoas nem se cumprimentam. Se, aqui, na Mouraria, eu não as cumprimentasse, no dia a seguir ninguém me falava. Neste bairro, se uma senhora parte uma perna, vêm logo perguntar: "Ó vizinha, quer uma sopa?"

Depois de trabalhar no Euroclube, fiz a tropa, onde fui colocado como socorrista. O meu alferes tinha sido instrutor nos Comandos, achava que nós éramos uns operacionais do batalhão e dava-nos formação como se fôssemos comandos especializados. No primeiro mês, custou-me muito, mas, quando estávamos a acabar a recruta, éramos nós que pedíamos ao alferes para nos dar ordem unida. "Ponha lá a gente a encher."
Saí da tropa e fui trabalhar como estafeta num escritório de produção de espectáculos em Lisboa. Andava de jornal em jornal, com envelopes na mão. Era um trabalho giro, estava sempre a passear de um lado para o outro. A dada altura, tive uma enorme vontade de sair de Portugal. Tinha alguém do outro lado do mundo à minha espera. Pensei que, para sair do país, teria de saber fazer algo na área da hotelaria. Para aprender, fui trabalhar no Hotel Embaixador, que tinha um restaurante no último piso. Um dos chefes de sala gostava muito de ensinar, e entre a hora do almoço e a do jantar, dava-nos um curso particular de alta hotelaria. Estive ali quase um ano a aprender. Era o chefe Sintra. Aprendi a servir às mesas, a descascar uma fruta, a despinhar um peixe. E a fazer algumas asneiras - como servir um bife tártaro enfeitado com um bocadinho de ovo moído, um bocadinho de cebola moída, um bocadinho de salsa…
Trabalhei também em dois restaurantes no Bairro Alto e depois fui para o Sr. Vinho, como empregado de mesa. Cheguei a estar no Sr. Fado e no Bota Alta, mas só cantava em casa ou, então, ia ao fado amador. Na altura, costumava ir beber uns copos ao NóNó. Eu gostava muito de escrever e escrevia poemas para fadistas. Um dia, a Beatriz da Conceição convenceu-me a cantar e a participar no programa "Fado Fadinho", na TVI, sobre fadistas da nova geração… Até que fui convidado para deixar a hotelaria e passar a cantar todos os dias. Arrisquei. Estive no Embuçado, na Parreirinha, na Mesa de Frades, em Alfama.

Quando comecei a viver da música, não havia assim tantas casas de fado, o fado não estava tão na moda. Não era fácil. Então, para complementar rendimentos, criei o meu próprio negócio de agente e de "manager". Gosto de criar carreiras de raiz. E tenho esta casa, a Maria da Mouraria, que tem fados de quarta a domingo. Consigo manter todas as tarefas como qualquer gestor que tem uma série de empresas: confiando nas pessoas e delegando. Mas delegar não é mesmo nada fácil. Aliás, tenho três anos para mudar de vida - daqui a três anos, faço 50! Mudar de vida no sentido de mudar de atitude, é altura de começar a pensar um bocadinho mais em mim, de ter mais tempo para viver. Quero continuar a cantar e manter-me ligado à indústria cultural, mas responsabilidades excessivas podem cansar. E cantar também é uma grande responsabilidade. O público, quando gosta de nós, rende-se, adora-nos. Não podemos traí-lo.


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